5. Heróis fundadores


Aparentemente, a cultura Tupinambá carecia de uma noção específica de divindades. Métraux na Religião dos Tupinambá (1979 [1925]) aponta isso como um sinal de certo "atraso" cultural, o que não é necessariamente o caso. O cronista Jean de Léry na Viagem à Terra do Brasil apresenta visão similar sobre os Tupinambá com quem esteve em contato, ainda assegurando que "quando  ribombava  o trovão e nos valíamos da oportunidade para afirmar-lhes que era Deus quem assim fazia tremer o céu  e  a terra a fim de mostrar sua  grandeza  e seu poder, logo respondiam que se precisava  intimidar-nos não valia nada" (1961, p. 164).

Essa aparente ausência de divindades pode se dever a três fatores: (a) o que é que se considera divindade dentro do contexto da mentalidade europeia, e se há equivalentes disso dentro da cultura Tupinambá; (b) o fato de que o cristanismo considera como divindade apenas o próprio deus, e todo o resto como demônios (no sentido de maus espíritos); (c) uma diferença de visão de mundo responsável pela ausência de necessidade de tal categoria de seres. Parece-me que se trata do terceiro caso: sobre isso, o relato de de Léry é elucidativo, uma vez que ele destaca que os índigenas mais ao norte do continente americano são "idólatras" de "falsas" divindades, enquanto afirma os Tupinambá como sem deus (1961, p. 163), noção presente também em Hans Staden (2010 [1557], p. 153-5). 

Ainda segundo Métraux, os fundadores culturais ou heróis civilizadores [1], como são mais frequentemente chamados, ocupariam um papel similar ao das divindades em outros povos "mais avançados" (1979 [1925], p. 1). Isso contrasta com o fato de que o fundador não parece apesar disso ter recebido culto e veneração incondicional, e sim ter sido visto como um "avô" com o qual podia volta e meia se acabar entrando em conflito. A similitude com divindades era todavia apenas no sentido de que os fundadores estão mais próximos das figuras de criadores. Quem de facto recebiam cultos eram os maraká, o instrumento pelo qual os espíritos falavam.

Os heróis fundadores são a quem os Tupinambá devem sua origem enquanto humanos, o que equivale a dizer "enquanto povo". Eles têm poderes superiores ao que comumente se atribui aos paîé [2]. Embora ele aponte o fato de que esses fundadores são mais transformadores que criadores, mesmo quando são geradores do céu, dos astros e da terra, só posteriormente, à custa de incidentes diversos, é que tal obra consegue ser finalizada. Todavia, aqui nem Thevet (1575) nem Métraux (1979 [1925]) deixam claro se o fundador apenas molda uma matéria pré-existente, como em mitologias indo-europeias, ou se cria o mundo ab nihil, isto é, a partir do nada. Embora Staden afirme que "eles crêem, de acordo com tradições antigas, que o céu e a terra sempre existiram" (2010 [1557], p. 155), ele não parece ter sido exatamente um perito nas crenças específicas dos Tupinambá, ou capaz de distinguir tantas minúcias e divergências entre as visões cosmológicas euro-judaica e Tupinambá, apesar de conhecer muito dos costumes nativos americanos, uma vez que sempre as apresenta de forma pejorativa, à moda dos europeus quinhentistas.

Para Métraux a noção de imortalidade era estranha aos Tupinambá, no que discorda dos clérigos que visitaram o Brasil indígena nos séculos XVI e XVII como Thevet (1575, p. 915b et al.), d'Évreux (1864, p. 277) e Léry (1961, p. 165), ou mesmo povos Tupi-Guarani modernos como os Urubu-Kaapor em Huxley (1963 [1957], p. 64 e 80) e os Tembé-Tenetehara com o seu Ikaiwéra, o lugar onde "quando envelhecem, não morrem, mas sim tornam-se jovens novamente" (Nimuendajú 1915, p. 288, tradução minha). Para Métraux (1969, p. 2), é apenas pela astúcia incomum dos heróis fundadores e demais seres superiores que eles eram capazes de manter a longa duração das suas vidas. Parece mais acertado, todavia, que os Tupinambá entendessem que seres "espirituais" ou aqueles que tivessem encontrado a Terra sem Mal não estariam sujeitos à morte natural, embora pudessem ser mortos através de outras formas "não-naturais".

Os fundadores Tupinambá tal como apresentados pela fonte contemporânea a eles mais completa sobre mitologia, isto é, os capítulos IV, V e VI do Livro XXI do Tomo II da Cosmographie Universelle de Thevet, teriam sido ligados por laços de parentesco e, como ver-se-á adiante, suas imagens e temas parecem bastante sobrepostas e difíceis de distinguir. Monã aparenta ter tido um caráter especial enquanto herói fundador. Já Sumé, Mairatá e Maíra-poxy formam juntos uma tríade de "Grandes Paîé e Karaíba [3]", e dado o seu cárater trino, convém ao menos deixar em suspenso a pergunta se há aí uma influência do credo euro-judaico.

Segundo Viveiros de Castro (2004), ao contrário dos ocidentais, os quais reconhecem o animal como forma básica do homem, do qual nós ainda possuímos traços que precisam ser controlados e tanto mais humanos somos quanto menos reproduzimos atitudes animais que estão subjacentes em cada um de nós, os indígenas reconhecem o humano como a matéria básica da qual os animais possuem apenas uma "pele" para se diferenciar de nós. Como aponta o estudo de Métraux (1979 [1925]) e os registros de Thevet (1575), de fato, os heróis fundadores são exatamente com muita frequência transformadores, mudando a forma de humanos em animais e outros seres naturais, e esses em humanos.

Para Métraux a "aparente multiplicidade" na cosmogonia de Thevet dos heróis fundadores se deve ao fato dele ter fundido em um só diferentes mitos ou versões dos mesmos mitos, considerando como figuras distintas a mesma, cujo nome vem seguido de epítetos vários, ou muda em função das ações a ele atribuídas (1979 [1925], p. 1), e essa opinião parece bem acertada. Métraux ainda destaca que em outras fontes o herói fundador é únivoco, por hora chamado de "Sumé", "Çumé", "Meire Humane", "Maire-ata", "Marata" ou simplesmente "Maire". Nos povos Tupi modernos, o herói fundador comumente é único, como apenas "Mair" ou "Maíra" entre os Urubu-Kaapor e os Tembé-Tenetehara (cf. Huxley 1963 [1957] e Nimuendajú 1915) ou Karosakaybu entre os Munduruku (cf. Murphy 1958) e Ñanderuvuçu entre os Apapokuva-Guarani (cf. Nimuendaju 1987 [1914]).

É importante notar que na exposição de Métraux e Thevet vários temas de facto se repetem entre esses fundadores como: (1) a instituição da agricultura em Maíra-monã, Mairatá, Sumé e Maíra-poxy; (2) o feito de ter presenteado os indígenas com a mandioca, que era seu principal alimento, ou outras raízes em Sumé, Maíra-poxy, Maíra-monã e o Maíra dos Tembé; (3) o fato de que flechas atiradas contra o herói se voltam aos indígenas em Sumé e Maíra, este último que provavelmente é Maíra-poxy; (4) paternidade de gêmeos, em alguns casos os mesmos, Arikuta e Tamandwara, em Sumé, Mairatá e o Maíra dos Tembé; (5) o já mencionado mencionado título de Grande Karaíba em Mairatá, Sumé, Maíra-poxy; (6) o fogo ou o sol em Maíra-poxy, seu filho Maíra e Monã; (7) parentesco direto com Monã: todos, talvez à exceção apenas de Sumé e Mairatá, o qual aparece também como neto de Maíra-poxy; (9) ser encurralado por humanos e ter que pular na tentativa de se salvar em Sumé e Maíra-monã; estão todos estes entre os atributos mais comumente registrados. A disputa entre irmãos, sendo um diligente e outro de índoles autocráticas também aparece de forma razoavelmente desordenada entre grupos Tupi modernos em conformidade com o exposto por Thevet para Arikuta e Tamandwara, bem como (a) o fato de que esses gêmeos são de pais diferentes, com o mais velho sendo filho do fundador e (b) o mais nobre salva o menos nobre, inclusive o trazendo à vida novamente em alguns casos. A característica de transformar seres parece mais que não tenha sido mencionada em todos os fundadores Tupinambá em Thevet apenas por acidente. Por outro lado, um tema que aparece, de acordo com Métraux, em mais de um autor atribuído a Sumé é a atribuição de pegadas na paisagem local, como em rochedos em beiras de rios e pedras, algo que d'Évreux também credita a "Marata" (1864, pp. 229-230).

Métraux (1979 [1925], p. 5) levanta a hipótese de Ehrenreich de que todos os heróis fundadores Tupinambá seriam manifestações do sol. Tal ideia merece alguma atenção. Além da identificação do pai de Maíra na Cosmographie Universelle de Thevet com Kwarasý, o sol, também Maíra-monã sobe ao céu (embora não se saiba necessariamente se vivo ou morto), e o mesmo para o próprio Maíra-poxy e Maíra. Monã não está diretamente ligado ao sol, mas ainda assim domina Tatá, o fogo. O Nhanderuvuçu Apapokuva surge desobrando-se a partir de si mesmo com "o sol em seu peito" (Nimuendajú 1987 [1914], p. 143). Isso é encontrado também entre povos Jê como os Krahô no centro do Brasil, onde Pahpam é definido como deus e sol (Aldè 2013, p. 31), o que aparentemente pode significar que o fundador dos índigenas em tempos primevos podia ser reconhecido como o sol em si como quis Ehrenreich, embora na época do início da invasão europeia esse tema já estivesse razoavelmente enfraquecido entre os Tupinambá.

Monã [Monan]
Monã (grafias variantes: Moñan, Monhã, Monham e Monan) é um nome que pode ter vindo da mesma raíz do tupi antigo "monhang" que significa "obrar, fazer, criar" (Métraux 1979 [1925], p. 17). Outra possibilidade seria o verbo mon'ana, "misturar, apagar" (Carvalho 1987, p. 192), associando ao caráter transformador dos fundadores Tupi. Para Thevet, "Monan" significa tanto velho quanto ancião (1575, 914a). Métraux não pensa que isso foge de nenhuma forma do padrão de figuras similares entre povos Tupi-Guarani: entre os Apapokuva-Guarani, encontra-se o herói fundador designado pelo nome Ñanderuvuçu ("Nosso pai grande") e Nhandejara ("Nosso avô"), por exemplo. 

Todavia, acredito que seja possível que Thevet tenha feito uma pequena confusão ao definir Monan como "velho", uma vez que ele define Maire como transformador [transformateur]. O qualificativo em língua tupi antiga é afixado sucedendo o nome ou verbo a que se refere e assim Maíra-monã [Maire-monan] renderia uma construção perfeitamente gramatical: "Ancestral-transformador", com o que "Monan" poderia ser equivalente a "Monhangara".

Deixando os detalhes importantes de lado, Monã é primeiro dos heróis culturais, que Thevet assimila ao deus cristão, sendo descrito por ele como um "ser [4] sem fim e princípio, que criou o céu, a terra, os pássaros e os animais no mundo existentes". Segundo Thevet, todavia, Monã não criou nem o mar, nem as chuvas (1575, p. 913b), embora Métraux suponha que ele tenha criado o ser humano (1979 [1925], p. 2). Thevet credita a Monã é o extermínio da primeira humanidade, embora a culpa a que foi imputada para merecer tal castigo não tenha sido mencionada na Cosmographie. Essa interpretação moralizante do dilúvio Tupinambá pode ser simples influência cristã colonial, pois está ausente em outros mitos similares de povos Tupi-Guarani, como o registrado entre os Tembé-Tenetehara (Nimuendajú 1915, pp. 288-289), os Araweté (Viveiros de Castro 1986, pp. 185-6), Apapokuva (Nimuendajú 1987 [1914]) e aparentemente os Urubu-Kaapor (Huxley 1963 [1957], pp. 189, 244-5 et al.). Monã então repovoou o mundo, mas o alterando drasticamente através de incêndios e inundações. Estevão Pinto sumariza a Monã como o pai, o amigo, o criador e o deus herói, imputando-lhe como atributo o fogo e a responsabilidade pela destruição do mundo (Métraux 1979 [1925], p. 19).

Maíra-monã [Maire-monan]
Maíra-monã (variante: Maire-monan, Meire Humane, Maira-monã e inicialmente Irin-magé ou Eri-paîé) seria, segundo Métraux, identificável com Monã, Sumé, Mairatá e Maíra-poxy. Estevão Pinto menciona Teodoro Sampaio em O Tupi na Geografia Nacional, para quem o nome Irin-magé dado por Thevet seria mais precisamente formado de "Magé", uma corruptela de "paîé", "pajé", e "Irin", provavelmente, de "eri", "velho, antigo", que assumi aqui na forma reconstruída do nome.

Ele teria tido uma importância igual à de Monã, e Thevet apresenta Maíra-monã sugestivamente quase como um filho dele. Estevão Pinto em especial enfatiza a identidade de Maíra-monã e Eri-paîé, uma vez que Thevet mesmo afirma que "Maíra-monã" é apenas um título dado a Eri-paîé após ele ter feito benfeitorias aos humanos (1575, p. 914a); Métraux não parece ter entendido isso razoavelmente bem pois classifica Maíra-monã como um "descendente" de Eri-paîé (1979 [1925], p. 2). Foi Maíra-monã que organizara todas as coisas, e depois as deu formas de homens, animais, etc. Maíra-monã também mudava a forma dos humanos em animais, para puní-los, segundo sua vontade. Eri-paîé teria sido o único humano poupado por Monã do aniquilamento universal. Thevet sugere que Maíra-monã seria um parente de Monã, o qual teria então lhe ensinado a arte das transformações.

Segundo Estevão Pinto, Eri-paîé, de posse dos poderes mágicos de Monã, que é seu pai, o substitui no trono celeste. Tal tese faz sentido, uma vez que quando Maíra-monã aparece no relato de Thevet Monã desaparece, e Staden afirma que sempre que um guerreiro matava uma vítima para o ritual de antropofagia ele assumia o nome dela e o somava ao seu próprio (2010 [1557], p. 150): ao tomar o lugar do herói fundador dos Tupinambá, Eri-paîé tomaria assim seu nome, tornando-se Maíra-monã. Métraux diz que Ehrenreich, dada a identificação de ambos aí, supõe que eles eram o mesmo.

Maíra-monã seria um exímio karaíba (Métraux diz "feiticeiro"), jejuando, afastadamente, e com adeptos. Apesar da similaridade, aqui não necessariamente nos deparamos com mais uma influência da visão dos cronistas cristãos, conforme é possível ver entre os paîé de povos indígenas ainda existentes. Ele não teria apenas poderes ilimitados; ele era conhecedor de todos os eventos naturais e mistérios ritual-religiosos. Os Tupinambá, na época da chegada dos europeus, consideravam várias de suas práticas religiosas como tendo sido ensinadas por esse fundador cultural: a tonsura ou corte rente de parte do cabelo, geralmente de forma arredondada (como o dos frades católicos) (Staden 2010 [1557], p. 147), a epilação (quando ocorre a remoção por extração dos pelos inteiros incluindo as porções abaixo da pele, como parte do bulbo piloso) e o achatamento dos narizes dos bebês recém-nascidos. Maíra-monã ainda ensinou aos indígenas comerem da carne dos animais ligeiros, com o propósito de adquirir essa característica, pois a carne dos animais lentos ou pesados demoveria a agilidade das pessoas.

Quando uma grande penúria atingiu a humanidade, Maíra-monã transformou-se numa criança, na qual quando se batia, raízes comestíveis caíam ao seu redor. Ele igualmente é aquele que deu aos Tupinambá os vegetais que eles usavam para comer, e ainda ensinou aos indígenas quais eram os vegetais nocivos, e quais possuíam propriedades medicinais. Não apenas isso: Maíra-monã foi responsável por ensinar aos indígenas sua organização política, e como se reunirem. Estevão Pinto ainda interpreta que Eri-paîé/Maíra-monã além de roubar os atributos do pai, obtém a chuva e com ela restaura a vida na terra, também instituindo a agricultura.

Além disso, esse fundador era exímio na arte das transformações (de si e de outras coisas), ao ponto de ter irritado muitos humanos, os quais o convidaram para uma festa, e o obrigaram a pular sobre três fogueiras. A primeira ele passou com sucesso, mas na segunda Maíra-monã evaporou-se ao pular e foi consumido pelo fogo. Com a explosão de sua cabeça surgiu o trovão, enquanto as labaredas do fogaréu se transformaram em raios. Logo após isso ele subiu ao céu, tornando-se estrela, junto de mais dois de seus companheiros. A depender do leitor, uma possibilidade é identificar assim que Maíra-monã é pai de Tupã, embora o próprio Thevet não diga nada além de que essa foi a origem dos raios e trovões (1557, p. 915a).

Maíra-poxy [Maire-pochy]
Apenas Maíra-poxy (variantes: Maire-po-chi, Maire-pochy e possivelmente Maire) pode-se dificilmente associar ao herói fundador, embora seja um parente de Monã. Todavia, Maíra-poxy aparece também como a personificação do sol, segundo Métraux. O próprio Thevet deixa em aberta a questão, dando como pai de Maíra [Maire] tanto Kwarasý [Caroubsouz] quanto Maíra-poxy, sem entretanto esclarecer se ambos são idênticos ou não (1575, p. 919a). Para Métraux o mito de Maíra-poxy tem vários temas, dos quais o principal não é de origem Tupi. "Poxy" significa "feio", o que, para os indígenas, equivaleria ao que chamamos de "mau" (Métraux 1979 [1925], p. 18).

Para Métraux (1979 [1925], p. 5), Ehrenreich demonstrou a origem andina do mito, analisando o relato de Thevet de Maíra-poxy que como um homem horrendo e desfigurado trabalha a serviço de outro, engravidando a filha deste, alimentando-a com o peixe por si pescado. Após nascer, o próprio filho reconheceu as armas do pai em um teste feito com as armas de todos os homens da aldeia para descobrir de quem era a criança. Métraux diz que a criança reconheceu o filho no meio de uma "multidão de guerreiros", isso me parece um pouco uma distorção do que se encontra em Thevet (1557, p. 918b).

Mas também encontram-se temas identificáveis como tendo origem Tupi-Guarani neste Grande Karaíba, segundo Métraux: Maíra-poxy e sua esposa, após expulsos da aldeia, recolheram-se no mato, onde fizeram enormes roças dos quais tiraram fartas colheitas. Em seguida, Maíra-poxy pediu a esposa que convidasse seus cunhados que apressaram-se em responder seu chamado, em especial porque estavam enfrentando grave necessidade. Todavia, segundo Métraux, esses levaram seus pais, e isso não foi nada bom para todos pois foram todos transformados em diversos animais, inclusive o velho cacique e sua esposa, que haviam desdenhado das habilidades sobrenaturais de Maíra-poxy.

Também é Tupi o terceiro dos temas de Maíra-poxy: este herói fundador, cansado de sua esposa, retorna ao céu. Todavia, seu filho queria seguí-lo e por isso Maíra-poxy o transformou em um rochedo, embora posteriormente o devolvesse a forma original. Esse filho usava um cocar feito de penas de fogo, de acordo com Thevet. Um vizinho pediu-lho emprestado e foi assim tão gravemente queimado, que lançou-se numa lagoa e transformou-se em uma saracura. Então, o filho de Maíra-poxy voltou para a companhia do pai, e descobre-se assim que ele era Kwarasý, o sol (Thevet 1575, p. 919a).

Mairatá [Maire-ata]
Mairatá (variantes: Maire-ata, Maira-atá) é o fundador seguinte, e Métraux também o associa a Maíra-monã e Sumé. Na cosmologia de Thevet, também aparece como pai dos gêmeos míticos. Depois de os ter formado, Mairatá abandonou a esposa e retirou-se a uma aldeia próxima do Cabo Frio, onde era um karaíba de muita autoridade, o qual, com auxílio de seus espíritos ancestrais [5] tornou-se hábil em prever o futuro. Quando seus filhos finalmente o encontraram após vários problemas, Mairatá os impôs diversas provas. A exemplo dos outros, Mairatá é apresentado por Thevet como um parente de Monã, sendo mesmo designado como "Mair-monan-atá".

Para Estevão Pinto, Mairatá deve ser identificável com Maíra-poxy, o mau, ou é seu neto, ou ainda é talvez ainda um duplo de Sumé. Já Yves d'Évreux relata que um "marata" de Tupã foi enviado para a terra, e deu-lhes a mandioca, entre outras coisas, mas os indígenas não levavam em conta os conselhos deste maratá, que assim afasta-se deles, deixando, todavia, em pedras suas pegadas e dos seus humanos e animais seguidores além dos buracos de seu bastão. Atravessou esse marata assim o mar em busca de outras terras, e, mesmo após o arrependimento dos ancestrais dos indígenas, eles nunca mais encontraram o enviado de Tupã, nem nenhum outro de seus maratás foi novamente enviado (d'Évreux 1864, p. 229-230).

Nimuendajú ao registrar os mitos dos Tembé-Tenetehara destaca que "Mairatá" foi um nome a que se referiram ao fundador (normalmente chamado Maíra) (1915, nota 1, p. 281). Para Nimuendajú, Mairatá poderia significar "Maíra o Andarilho" [Maíra der Wanderer]. 

Sumé [Sommay]
Sumé (variantes: Sommay, Zomé, Tumé, Tub, São Tomé, São Tomás e talvez Tup) é a quem Thevet chama de "Grande Paîé e Karaíba", o que Métraux diz ser por sua condição de pai dos irmãos Arikuta e Tamandwara, provocadores do dilúvio. "Sumé" ou "Tumé" seria o absoluto de tubé, podendo ser interpretado como "Pai estrangeiro". Pela similaridade de nomes, os cronistas cristãos frequentemente o associavam ao personagem conhecido como São Tomé, um discípulo do messias deles.

Os Omagwa o identificam com Tupã, já Métraux ainda identifica Sumé com Maíra-monã, dada a ligação de seus mitos e similaridade que ambos possuem nas crônicas portuguesas. Estevão Pinto, todavia, argumenta que Sumé é um filho de Maíra-monã, e que ele forneceu os alimentos aos Tupi, bem como suas primeiras noções agrárias.

Segundo E. Pinto, ele seria um caraíba que viveria separadamente da sociedade, em lugares ermos e em jejum e ascetismo. Ele ainda associa isso ao fato de Sumé ser filho de "Maíra", o qual significa "solitário, coisa apartada, ente separado". Para E. Pinto, seu atributo seria o pé, possivelmente graças à associação de Sumé com sulcos cavados em lápides ou frutos de erosões naturais, que seriam suas pegadas.

No relato de Nóbrega, referido dentro da obra de Métraux, além deixar marcas de pegadas em rochas ao fugir de índigenas e os matos abrirem-se para que passasse, Sumé ainda era capaz de repelir flechas de volta a quem lhe as atirava. Entre os Tupi da Bahia Sumé teria ensinado sobre as virtudes da mandioca, porém estes em vez de ficarem agradecidos, quiseram devorar-lhe. Para salvar-se, Sumé foge, e, ficando encurralado pelo mar, dá um pulo, fincando marcas de seus pés no chão, assim chegando a ilha da Maré. 

Maíra (-poxy) e Çumé
Um aspecto de Sumé, como parte de uma dualidade com Maíra ou Maíra-poxy, precisa ser propriamente analisado em separado. Para Estevão Pinto, Maíra-poxy pode representar uma dupla personalidade. Anchieta escreve que "também lhes ficou dos antigos notícias de uns dois homens que andavam entre eles, um bom e outro mau: ao bom chamavam Çumé [...] O outro chamavam Maíra". Os filhos de Sumé, por sua parte, eram um bom chefe de família e outro belicoso e de índole autoritária, o que leva E. Pinto a crer que Métraux estava correto em igualar Çumé e Maíra. Maíra, em si, seria apenas um outro nome para Maíra-poxy.

Já em Informação do Brasil, de autor anônimo, Çumé e Maíra são vistos como duas figuras distintas novamente, o que Métraux assinala como um erro. Nesta obra Çumé é um homem bom, que só praticava coisas bondosas, enquanto Maíra um homem mau, sendo inimigo de Çumé. Seria por essa razão que os indígenas inicialmente chamavam de "maíra" o inimigo dos portugueses (embora pareça aqui que não levaram em conta que os franceses eram aliados dos Tupinambá e que os próprios Tupinambá eram inimigos dos portugueses). Nesta obra o tema das marcas de pés na paisagem são atribuídos a Çumé e seus companheiros novamente.

Maíra
Entretanto, Maíra em si merece ser analisado. Thevet lhe dá apenas uma rápida aparição, no que parece ser identificado com o filho de Maíra-poxy e Kunhã-eté [Quoniathe] concebido após ela comer o peixe oferecido pelo pai, e recebendo pouco destaque, estando também ofuscado pela figura de seu filho Mairatá que desenvolve um papel mais ativo e proeminente.Todavia o próprio Thevet deixa um pouco entrelinhas o fato de que Maíra [Maire] é o nome dado a todos os fundadores e seus karaíba, além de deixar explícito que maíra também é como os franceses eram chamados, por serem considerados os verdadeiros filhos de Maíra, isolados do outro lado do mar.

A palavra, como já dissemos acima, aparece em cognatos entre os Urubu-Kaapor como Mair e Tembé-Tenetehara como Maíra com toda a força do fundador único destes povos, e só parece um pouco menos importante, embora na maior posição de destaque, no cosmos Araweté: Maï são a categoria principal de espíritos (basicamente equivalendo então a divindades) entre os Araweté, mas Viveiros de Castro ressalta que eles não tem uma posição parterna, como é comum em outros povos Tupi (1986, p. 261) e são mais heróis guerreiros que culturais, os quais fazem um ritual antropofágico com cada Araweté quando este morre, para então a partir dos seus ossos dar-lhe a vida após a morte. O próprio nome em si, como já ficou claro serve de composto para vários nomes dos heróis-karaíba apresentados por Thevet (Mairatá, Maíra-monã e Maíra-poxy), o que leva a crer que originalmente o nome do fundador dos Tupinambá devia ser mesmo Maíra, apesar dos registros escritos que nos restaram apresentar Monã como o "primeiro Maíra".

O Maíra no mito dos Tembé-Tenetehara (Nimuendaju 1915, pp. 281-282) andava na terra quando os indígenas só cultivavam sementes chamadas de camapu. O primeiro humano que o encontrou tratou Maíra desrespeitosamente. Como punição, o fundador fez com que a mata invadisse a roça dele, que saiu em perseguição de Maíra, mas terminou morto. Já o segundo homem, tratando-o com cortesia, viu suas plantações serem transformadas em raízes de mandioca. Maíra então ainda havia ensinado o segredo deste vegetal ao homem de forma que ela crescesse instantaneamente. Tendo o indígena duvidado, foi punido com a espera de um ano para poder fazer sua colheita. Ele ainda transformou um tronco de árvore em mulher, o qual abandonou depois de engravidar. O herói só reaparece para impor desafios aos seus filhos, os gêmeos míticos. Maíra viveria uma vida cheia de prazeres no Ikaiwéra, aparentemente a interpretação Tembé da "Terra sem Mal".

Genealogias em Thevet
A forma como Thevet apresenta os fundadores na Cosmographie Universelle deixa-nos inferir rusticamente uma rama genealógica, a qual poderia ser simplificada assim:
  1. Monã seria pai de Eri-paîé (também chamado Maíra-Monã), Maíra-monã seria pai de Tupã;
  2. Dos parentes de Maíra ou Monã (se os entendemos como um só neste caso), surgem Maíra-poxy e Sumé;
  3. Maíra-poxy é pai de Maíra, Maíra é pai de Mairatá, Mairatá é pai dos Gêmeos que não são nomeados por Thevet, e provavelmente são Arikuta e Tamandwara;
  4. Sumé é pai de Arikuta e Tamandwara, de Arikuta nascem os Tonayatz e de Tamandwara os Tupinambá.

Notas
[1] Aqui preferimos o termo "heróis fundadores" (e por vezes simplesmente "fundadores") de Ailton, conhecido líder indígena da etnia Krenak (1992, S-D), em oposição ao uso "heróis civilizadores" de Métraux — o latim civitas, na origem de "civilizador", está em direta oposição ao pagus, a área rural das dependências romanas, o que não nos parece uma dicotomia realmente interessante dado o caráter naturalista das mentalidades nativas da América. Os fundadores dão aos indígenas sua cultura — e também seu mundo material —, mas esta não está em equivalência (nem precedência) à "civilização", isto é, o processo europeu de fazer-se urbano e supostamente independente e superior à Natureza.

[2] Os quais Métraux chama de "feiticeiros" (1979 [1925], p. 1), denominação que no todo não concordo.

[3] Sendo que "karaíba" é "o sábio, o santo, o sagrado" conforme a definição de Estevão Pinto (Métraux 1979 [1925], p. 20), mas acredito que a melhor definição é algo como "humano-espírito", baseado em David K. Yanomami & Ana M. R. Gomes (2015). O cosmo segundo os Yanomami: Hutukara e Urihi, p. 151. e Viveiros de Castro (1986, p. 206). Isso aproximaria bastante da noção parcial captada por Thevet ao definir karaíba [caraibe] como um demy-dieu ou semi-deus, algo mais que humano embora não exatamente ainda um deus (1575, p. 918a).

[4] Estevão Pinto traduz como "astro" (Métraux 1979 [1925], p. 1). O termo original em francês na Cosmografie Universelle é "estre", que acredito ser forma arcaica de "être" [ser], como aliás aparece constantemente na obra, e não um erro tipográfico por "astre" [astro]. Isso é suportado pela própria construção original do texto de Thevet, no qual "astre" não faz muito sentido: "la premiere cognoissance donc que ces Sauuages ont de ce qui surpasse la terre, & d'vn qu'ils apellẽt Monan, auquel ils attribuent les mesmes perfections que nous faisons à Dieu, le disans estre sans fin & commencement, estans de tout temps, et lequel a creé le Ciel, la terre e les oyseaux et animaux qui sont en eux" (1575, p. 913b, grifo meu).

[5] O termo usado por Métraux é "demônios familiares". Suponho que "demônio" tenha o sentido grego de daimon, um gênio, e não dos espíritos infernais cristãos. "Familiar" é comumente usado para uma criatura de feições animalescas, usada por bruxas, e esse pode ter sido o sentido intendido, e não o de "parente". Dado os outros usos de "familiar" no texto de Métraux, todavia, optei por entendê-lo como sinônimo de "alguém da família". Assim, a expressão equivaleria perfeitamente a "ancestrais" ou "espíritos ancestrais". 

Referências Bibliográficas
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