Paîé: os humanos que são espíritos

Nesse artigo vamos analisar algumas das ideias referentes aos paîé, os xamãs Tupinambá, através das evidências dos cronistas da época da invasão europeia do Brasil e dos povos Tupi-Guarani e algumas comparações externas que reforcem e esclareçam o caráter de ideias da função e atributos do paîé dentro de um contexto Tupinambá.

Espírito para os Tupi-Guarani e o Paîé como espírito
Essencial para se entender a função do paîé é a compreensão do que é espírito, porque tudo o que ele faz envolve algo que chama-se de "espírito". Enquanto no português moderno espírito é entendido essencialmente como um princípio imaterial porém presente em algumas formas de matéria consideradas biologicamente vivas (sendo nesse caso idêntico com a alma de uma pessoa), e algumas vezes entendido como desprendido do corpo biológico, tornando-se um fantasma, entre os indígenas o conceito parece um pouco diferente. Basicamente se supõe que dois tipos de espírito diferentes e quase opostos existem: o do morto e o do vivo, embora nenhuma categorização mais clara consiga distinguir em que, além da presença do corpo biológico, os dois tipos realmente diferem.

Entre os Araweté, todavia, os bïde são comumente entendidos como os humanos, mas também podem ser associados com qualquer tipo de ser (sobre)natural vagamente antropomorfo. 

Mas o que caracteriza todos os seres que chamamos de "espíritos" é que eles são sempre pensados, pelos Araweté, como dotados de uma potência ou essência "xamânica": ɨpeye. Neste sentido, talvez devessemos inverter a definição, dizendo que os xamãs (peye) Araweté é que são dotados de uma potência "espiritual" visto que a ɨpeye seria imanente a tais seres. Tratar-se-ia, portanto, menos de definir os "espíritos" como sendo, todos, xamãs, que os humanos como sendo, alguns, espíritos — i. e., xamãs [1a]. 

Ou seja, logo de cara a dicotomia corpo-espírito ocidental é inexistente, na forma que conhecemos, entre os Araweté. Humanos (bïde) podem ser vistos como espíritos, isto é, como possuidores da "essência que espiritualiza" a ɨpeye que quase ao pé da letra deve significar algo como "(aquilo) com (que) ele (é/faz(-se)/manifesta(-se)) pajé". A raíz -peye vem do tupi antigo paîé.

Entre os Yanomami isso não é nada incomum também: os brancos são napë pë, uma classificação aparentemente dúbia para o pensar ocidental, que significa "homem branco, inimigo, espírito ruim" enquanto os xapiri (o termo nativo deles para paîé e para "espírito") Yanomami também tornam-se xapiri, que a rigor, são a mesma classificação dos espíritos chamados nos trabalhos dos paîé para proteger a comunidade Yanomami [2]. Embora Araweté e Yanomami não sejam povos relacionados historica- e linguisticamente, ambos preservam ideias bastante similares formalmente, e é isso que aqui nos interessa e fornece pistas básicas para o começo do entendimento do paîé sul-americano num contexto Tupinambá reconstruído.

O Maraká, o instrumento do paîé
Maraká, do tupi antigo mbará, "barulho", e , "casca", "invólucro" [3a], é o instrumento sagrado par excellence na América do Sul. Ele é comum a todos os povos que conheço no Brasil e em outros países vizinhos, e possui diversos significados, embora na maior parte dos povos ele não é visto como apenas um instrumento musical, mas encerra significados muito mais profundos. Ele é feito de uma cabaça natural, da qual o miolo é retirado por dois furos no centro, por onde se coloca uma haste madeira o atravessando; então ali são colocadas pedrinhas, feijões ou milho dentro e ele é decorado com penas, pinturas e/ou entalhes, se tornando uma espécie de chocalho.

Entre os Pumé da Venezuela, por exemplo, acredita-se que as pedrinhas do chĩ (como os Pumé chamam o maraká) são as almas dos tío, que entram e podem deixar o chĩ por espontânea vontade, não são colocados ou retirados. Esses tío são crianças que morreram antes de nascer, e que por isso assumiram uma posição intermediária entre os seres humanos e os deuses, a quem intercedem pelos humanos. Os chĩ são tão sagrados que não ficam à luz do sol pra não incomodar os tío, e são o instrumento pelo qual os tío falam aos humanos durante as danças de Tõhé dos povos Pumé. A venda de um chĩ causava enorme desgraça e mesmo a morte, sendo considerado como um desrespeito aos tío [4].

A importância dos maraká no Brasil pré-cabralino é atestada pelos cronistas europeus. Jean de Léry, diz que os karaíba (profetas indígenas) portavam eles, um em cada mão. Léry ainda diz que os karaíba e paîé fincavam os maraká no chão após confeccionar e pediam que as pessoas da aldeia deixassem ali aos pés dele comida e bebida, que os espíritos armazenados no maraká consomem durante a noite, e assim eles permaneciam por quinze dias a três semanas recebendo tais ofertas [5].

Entre povos ainda vivos como os Krikati e os Bororo (do tronco Macro-Jê) o maraká é feito nos mitos pelos deuses ou espíritos superiores, e precisam ser buscados por um humano muito corajoso, porque em ambos os casos os donos do maraká caçariam quem o roubou, caso dessem falta ou o objeto chiasse antes de estar a salvo. Assim, ou através de um cuidado absurdo, ou da ajuda de pássaros como o colibri, o maraká conseguia ser trazido pra comunidade humana [3b]. Entre os Tenetehara (da família Tupi-Guarani) o tema é similar, mas representa o rito de passagem dos meninos, através de Wira'í, que enfrentou uma longa jornada pra retornar pra casa e comemorou transformando-se em um passarinho, cantando e tocando seu maraká, quando enfim chega, após a ajuda dos animais da mata [3c].

Entre os Araweté, o aray (como chamam o maraká) é onde a força do paîé, a ɨpeyese manifesta [1b].

Assim o maraká é por excelência uma forma de comunicação com o mundo divino ou dos mortos, um instrumento sagrado e muito importante entre os indígenas, e todo o seu simbolismo e uso, tanto por homens que atingem a fase adulta e/ou por paîé e karaíba indicam o respeito com que ele era e é visto nas culturas indígenas. 

[continua...]

REFERÊNCIAS
[1] Eduardo B. Viveiros de Castro, 1986. Araweté, os deuses canibais, (a) p. 206, (b) 207.
[2] David K. Yanomami & Ana M. R. Gomes, 2015. O cosmo segundo os Yanomami: Hutukara e Urihi, p. 151.
[3] Claudio Zannoni & Maria M. dos Santos Barros, 2o12. A voz dos espíritos: Uma abordagem sobre o maracá em sociedades indígenas do Maranhão, (a) 28, (b) 28-29, (c) 29-30.
[4] Gemma Orobitg Canal, 2016. A vida dos maracás:  reflexões em torno de um instrumento ritual entre os Pumé da Venezuela. 
[5] Jean de Léry (trad. Sérgio Milliet), 1961. Viagem à Terra do Brasil. 

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