Os Gêmeos



Dentro das cosmologias Tupi-Guarani um par de figuras assume um papel tão proeminente quanto o do fundador primordial. Eles são os irmãos, “gêmeos” sob a concepção indígena: um sendo filho do herói cultural, o segundo de alguma outra figura. Aparentemente os indígenas consideravam que para que uma mulher engravidasse de gêmeos ela precisaria de relações sexuais com dois homens diferentes.

Thevet divide as narrativas de gêmeos em duas partes, de modo que na primeira, que é bem menor, ele menciona várias vezes os nomes deles: Arikuta [Aricoute] e Tamandwara [Tamendonare], a segunda, bem mais extensa, não tem nenhuma menção de nomes dos gêmeos.

A primeira história que Thevet conta parece ser de facto apenas uma racionalização cristã: ele tomou uma passagem em que Arikuta e Tamandwara, ditos serem filhos de Sumé, um parente de Monã, e colocou em sequência após o dilúvio causado por Monã. Obviamente elas assumem essa posição inicial menos pelo seu papel dentro da mentalidade dos indígenas que na do frade francês, uma vez que o dilúvio é dos temas fundadores da mitologia cristã. O dilúvio atribuído aos gêmeos parece totalmente deslocado da narrativa natural, uma vez que Thevet precisa voltar depois e recontar tudo do começo, e dessa vez sem nomear nenhum gêmeo, que são ditos então serem filhos de Maíra-atá.

Todavia, os episódios relatados por Thevet aparecem com variantes entre vários outros povos registrados por Curt Nimuendaju: os indígenas da Aldeia de Santa Rosa (Tupinakyîa), Apapokuva-Guarani e os Tembé-Tenetehara. E eles são atribuídos a apenas um par de gêmeos, ligados de forma que não fica dúvida da unicidade dos fatos e identidade dos autores na narrativa.

As variações seguintes são as que estão em pontos mais interessantes:

a: i) Em Thevet a mãe precisa pegar legumes para o filho na barriga para que ele lha indique o caminho. ii) nas versões Tembé e Apapokuva são flores, a versão Tupinakyîa não diz nada sobre isso.

b: i) Quando a mãe se nega a pegar o que o filho pede, ela é mandada pelo filho à casa de Mykúra, na versão Tembé, onde ela engravida do segundo filho. ii) Na versão Apapokuva é o próprio fundador Ñanderuvuçu quem pede a Ñanderú Mbaecuaá, seu ajudante, que “prove” a esposa. iii) A versão Tupinakyîa só diz que a mulher chegou a casa do rato Xupaty e ali, dormindo numa rede armada por baixo da do rato, do calor do corpo dele, engravidou do segundo filho. iv) Na versão Tupinambá de Thevet ela chega à casa de Sarigwé [Sarigóys], ou Cassaco, que é na verdade um humano que só é transformado no bicho a que dá nome após deitar-se com a mulher do Fundador.

c: i) Na versão Tupinambá de Thevet a mãe é capturada por um homem chamado Îagwara [Iarnare], ou Jaguar. ii) Nas versões restantes a mãe chega na toca de jaguares.

d: i) Nas versões Tupinambá e Tembé os gêmeos usam anajás (Thevet escreve ivaia) como emboscada para os assassinos da mãe. ii) Na versão Apapokuva são guaviraeté e iii) na Tupinakyîa são jabuticabas.

e: i) Na versão Tupinambá Îagwara e seu povo são punidos por serem transformados no animal a que dão nome. ii) Nas restantes as onças são mortas por afogamento.

f: i) Nas versões Tupinambá e Tembé os gêmeos são impostos tarefas para provarem sua filiação. ii) Na versão Tupinambá os filhos são ambos aceitos pelo fundador Maíra-atá. iii) Na versão Tupinakyîa o pai presenteia o filho com armas, mas ele pega apenas as que os indígenas usam e as ferramentas “de branco” ele doa ao irmão. iv) No relato Apapokuva a questão é totalmente olvidada.

g: Se i) na versão Tupinambá Arikuta dá origem aos Tobaîara [Tonayatz], os inimigos imemoriais dos Tupinambá no século XVI, ii) na versão Tupinakyîa o irmão gêmeo que não é filho do fundador é um branco ― isto é, o “novo” inimigo.

h: Uma coisa que fica clara em todas as versões é que o filho do fundador sempre ou ressuscita ou possibilita a ressurreição do irmão ao menos uma vez.

Os próprios gêmeos algo que assumem parte das funções do fundador. Isso é visível no fato de que eles também operam transformações de si mesmos e outros em animais, e fundam povos.

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