Tradição, Cultura, religião, espiritualidade?

À primeira vista tudo parece uma questão de opostos simples. Se os Tupinambá foram convertidos ao cristianismo, isso significa que antes de serem cristãos eles eram pagãos de algum tipo, isto é, tinham algum tipo de religião ou culto que tem qualquer coisa de similar com o cristianismo em algum sentido. Mas uma análise mais detalhada das práticas dos Tupinambá revela vários cronistas dos séculos XV e XVI algo entre atônitos e revoltados com o fato dos nativos da costa serem todos sem deus, algo em que concordam Jean de Léry, Yves d'Évreux e Hans Staden —  só André Thevet parece mais complacente ao dizer que Monã tem "as mesmas perfeições que atribuímos [os cristãos] a Deus" —,  como se isso implicasse ausência de religião per se (por si mesmo).

Mas os Fundadores não necessariamente recebem alguma espécie de culto no sentido que o Deus cristão recebe, ele é um avô, um ancestral, e alguém que a memória faz(ia) questão de lembrar aos antigos desta terra que volta e meia eles podiam acabar entrar em conflito; o Fundador, chamado de Monã, Maíra-monã, Maíra-poxy ou qualquer outro dos nomes que Thevet dá, é nisso muito similar aos deus pagãos indo-europeus e sua moralidade dualística. 

Pior ainda: se procurarmos qualquer sinal daquilo que o cristianismo considera religião entre os Tupinambá, vamos encontrar apenas sinais débeis. 

Havia alguns karaíba com um status quasi-messiânico (embora fosse muito comum haverem messias indígenas) fazendo curas, falando da Terra sem Mal onde roças se plantariam sozinhas, as caças viriam à mesa, e que seria o local onde em vez de morrer, se rejuvenesce ao ficar velho. Esses karaíba eram vistos como algo entre o humano e o espiritual e parecem ter recebido alguma espécie de culto, embora os cronistas venham a chamar-lhes de embusteiros e coisas afins. Havia também os paîé cuidando da saúde da comunidade local, eliminando os espíritos ruins dos corpos dos Tupinambá, que aparentemente não receberam culto.

Os karaíba por sua vez davam vida aos maraká, os chocalhos feitos de cabaça com um bastão trespassado, com milho, feijão e outros grãos ou pedras dentro e decorado com plumas. Esses recebiam ofertas de alimentos por semanas, e então, quando os espíritos nele entravam e eram usados nas cerimônias. Pela forma como eram guardados — numa casa especial para si dentro da oka — é de se esperar que recebessem alguma espécie de culto.

Fora isso, teríamos as danças, que não parecem ter sido bem esclarecidas aos cronistas quando e porque ocorriam, os rituais de passagem de puberdade, as restrições impostas no nascimento de um novo bebê, a guerra, a cerimônia para se matar ao cativo inimigo, tudo isso assumia função ritual [1]. A festa do kawĩ (bebida fermentada de mandioca) não parece ter igualmente sido de menor importância, embora soe como totalmente profana a um olhar cristão.

Mas aquilo que um europeu ipsis litteris (ao pé da letra) conhecia como "religião", algo mais ao estilo hindu ou mahometano, isso parece ter inexistido entre os Tupinambá. O trocadilho etnocêntrico de Gabriel Soares de Sousa sobre a ausência dos sons /f/, /l/ e /r/ (o qual inclusive não era totalmente ausente de verdade, seja aspirado ou seja vibrante) aludindo à falta de fé, lei e rei dos nativos da costa preserva algumas doses de verdade: de fato, o que uma sociedade totalmente isolada da Europa pensava sobre o sentido do mundo (fé), o direito dos seres humanos (lei) e a organização espaço-social da sociedade (rei) eram bastante diferentes. Dentro do modo de vida Tupinambá — nada atrasado ou primitivo — essas três convenções sociais eram desnecessárias, principalmente porque a forma degenerada que a Europa as vivenciava e contaminava o mundo com elas era sobretudo algo que eles não queriam para si, muito corretamente.

O termo "religião" ainda me parece falho por um segundo motivo. A exaustivamente conhecida etimologia da palavra remontando ao latim re-ligare, religar, resultando religião como uma religação já é outra ideia que me parece supor uma visão bastante oposta daquilo que os indígenas pensam. Se é bem verdade que os Tupinambá, como outros Tupi, tinham a história da expulsão do mundo teoricamente perfeito — mas não "ideal", uma vez que ele encontra-se aqui na Terra, é um mundo físico — e da tentativa de retorno a ele, todavia, eles não se sentiam — ao menos não antes da chegada dos invasores europeus — como que perdidos e rebaixados: divididos do "divino" e tendo que o reencontrar — que aqui é na verdade uma metáfora para o self euro-judaico perdido. Era antes uma re-affirmatio, uma reafirmação, e as palavras de Aílton Krenak em algum lugar ecoam na minha cabeça falando que "não existiu apenas um começo do mundo e acabou, todo instante é o começo do mundo", e o papel dos movimentos que emulam o agir de pássaros e peixes nas danças, et al seja reafirmar isso. Que os Krenak sejam Jê e não Tupi só corrobora o quanto isso era parte do ethos americano antes da invasão. Os ritos dos indígenas não busca(va)m o reencontro da alma perdida com um deus distante e imaterial, eles reafirma(va)m essa conexão e relação permanente entre os humanos e a Terra, como uma grande mãe. 

E que os new agers de plantão não distorçam minhas palavras: Porque se desenvolver relações é a forma de conhecer indígena, se dividualizar a si e ao outro, humano ou não, é como ele manifesta existencialmente o seu ser e apercebe o outro, então a Terra obviamente é a persona dividual maior, isto é, é aquela com quem mais nos relacionamos como um todo. E daí para que ela faça parte da noção de parentesco (kinship) é só a próxima consequência lógica, dado que, materialmente, é da Terra (yby) que viemos, e dela não estamos separados.

Por outro lado, apesar de usar a palavra "espíritos" anteriormente — por ausência de um termo melhor ou mero vício cognitivo — não sei exatamente se poderíamos chamar o que os Tupinambá faziam de "espiritualidade". Primeiro, um conceito de espírito — uma consciência totalmente imaterial — não parece ter existido at all (de nenhuma forma) entre os Tupinambá. Não parece ter havido um "animismo" em nenhum dos sentidos que Tylor dá a essa palavra: como crença em espíritos ou como projeção de qualidades humanas em objetos. O que não quer dizer que "animismo" mais ao estilo Bird-Davidiano, ou seja, como uma maneira de conhecer e se relacionar com os entes humanos ou não fora do ser humano, não existisse entre nossos antigos ancestrais. Mas creio que todo bom leitor de antropologia vai concordar que chamar de "espiritualidade" (que me parece evocar todos os sentidos que Tylor dava a "animismo") não era exatamente aquilo que os Tupi da costa faziam.

Por isso penso que nem "religião" nem "espiritualidade" são as palavras que definem aquilo que os Tupinambá faziam, e, por consequência, aquilo que eu busco. "Maneira de ser", "visão de mundo", "cosmovisão" ou simplesmente "cultura" parecem muito mais apropriados: se enxergamos as coisas de uma forma, então agimos de uma maneira coerente com ela, e assim aí encaixam-se os outros elementos culturais como ritos de passagem, histórias, danças, cantos, cuidado com a Terra, etc. É aí que a noção de "tradição" entra em jogo, não como um conjunto estático de práticas, mas antes como uma maneira de existir viva e real, adaptada às nossas vidas, sem deixar de ser fiel aos nossos ancestrais —  que é o que de fato "tradição" é e foi para os antigos Tupinambá.

E, assim saindo um pouco mais das categorias de pensamento euro-judaicas, é possível que consigamos melhor compreender aquilo que os antigos Tupinambá que nos deram origem fizeram,  e dessa forma podemos — tanto quanto possível, e sem cozinhar nossos inimigos para jantar — nos aproximar mais de como eles experienciavam isso que viemos a chamar de "cultura" e "religião".

NOTA
[1] Falando sobre aquilo que podemos praticar ainda hoje, obviamente rituais de guerra e principalmente antropofagia ritual estão fora de cogitação — nem os Tupi-Guarani que não foram totalmente aculturados a praticam mais. Também os ritos de nascimento e passagem feminina, numa sociedade global, ficam um tanto complexos de serem mantidos ipsis litteris, ao pé da letra, quando o tempo profano é cobrado pesadamente na fração do dia de cada pessoa. As danças possuem um bom significado e prática, mas, num contexto individual, como é o meu caso, se tornam um pouco sem sentido. A questão para um interessado sério em vivenciar o reconstrucionismo Tupinambá mantendo a lógica antiga é dupla (se se encontra sozinho): 1) como resolver o lado "social" tão necessário da prática numa sociedade de pessoas que não dão nenhum valor às suas raízes? 2) Como resolver o contato (forçado e inevitável) com o mundo ocidental totalmente inclinado em outra direção em relação ao pensar e agir indígena?

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