Ontologia relacional Tupinambá

a. Desconstruindo os conceitos de "natureza" e "sociedade"
1. Os conceitos de pessoa do mundo não-europeu são bastante diferentes. Qualquer coisa que os ocidentais em seu senso comum ou científico entendam por "pessoa" ou "espírito" absolutamente não se encaixa dentro do pensar indígena.

2. A noção de personalidade indígena não se faz "em si" mas "para o outro" ou "para mim". O que isso significa? Que boa parte do mundo ao redor da comunidade Tupinambá é entendida em termos das relações e funções sociais que desempenhavam para com os humanos.

3. Exposto de outra forma, equivale a dizer que as fronteiras (e oposições) que a mente ocidental comumente faz entre "natureza" e "sociedade" não são algo tão clear-cut [bem definidas], de acordo com padrões materiais, nas mentalidades indígenas como na mentalidade euro-judaica, mas são construídas de forma relacional.

4. No pensar ocidental, um ente que se manifesta como "humano" é sempre um "humano" e um "rio" sempre um "rio", sendo que o primeiro é considerado um "ente social" e o segundo um "ente natural" [1]. Para um indígena um humano par excellence [por excelência] é um índígena do seu povo: os outros humanos podem fazer parte do mundo dos (maus) espíritos e portanto estarem fora da "sociedade". Por outro lado, um rio pode ser considerado como algo que dá vida, isto é, um pai ou uma mãe, e assim fazer parte da "sociedade" humana.

b. Animismo
1. O animismo possui muitas definições, mas seguindo a linha anterior (item a), podemos o definir em nosso contexto como a capacidade de reconhecer personalidades ou espíritos em entes não-humanos. Nesse sentido, o conhecer animista não é, como no mundo ocidental, uma divisão de sujeito (ente humano) indo contra o objeto (ente não-humano), mas um relação de duas vias entre dois sujeitos, sejam eles entes materialmente humanos ou não.

2. Mas vamos a um exemplo prático. O nosso supracitado rio, por exemplo, pode ser compreendido:

(a) do ponto de vista ocidental, no qual ele é só uma reserva material de um recurso hídrico; nesse sentido ele é apenas um corpo, uma coisa, um objeto do qual a comunidade humana dispõe da forma que lhe dá na telha; para lhe conhecer os humanos o analisam materialmente, dividem-no em partes, procuram entender as coisas que o formam e como elas podem ser utilizadas; ou

(b) do ponto de vista indígena, no qual ele é observado pela sua função social; como ele é necessário à vida da comunidade, como sem ele a comunidade não vive, ele passa a ser entendido analogicamente, isto é, por comparação, com uma mãe ou pai, avó ou avô ou outro antepassado, que deu igualmente à vida aos humanos em questão; neste caso um uso descuidado não é possível, o rio precisa ser respeitado, ouvido, mantido, cuidado, exatamente como é feito com um ente humano, de certa forma o próprio rio recebe características humanas e entendê-lo é relacionar-se respeitosamente com ele, ou seja, preservá-lo, conhecendo os efeitos mortais (falando de algo estreitamente material e nada mitológico aqui) da ausência do rio na vida da comunidade humana.

3. Um exemplo prático disso foi dado por Thevet na Cosmographie Universelle (1557, pp. 917a-917b). Ele nos conta de uma pedra com cerca de cinco pés de largura à beira do mar, na qual se via pequenas marcas como de um bastão e de pés humanos. Os Tupinambá do Rio de Janeiro (Cabo Frio) diziam que essas marcas de pé eram de um karaíba que lhes deu o conhecimento do uso do fogo, e do plantio de raízes, já que antes eles viviam apenas de árvores, ervas e frutos caídos das árvores, sem todavia plantar nada. Após a morte de Maíra-monã e de dois de seus companheiros que foram transmutados em estrelas [2], Gwarasý, o Sol, mandou as outras estrelas que em memória de Monã e seus companheiros que essa santa pedra fosse trazida para a terra, para os homens a reverenciar, afim de manter a memória do Grande Karaíba. Há muito tempo atrás essa pedra era guardada por um tipo de macaco chamado Moritolyf [3], que é de cor dourada, e se queixa como uma criança, e tem uma cauda bastante longa, bastante difícil de pegar por causa de sua ligeireza e habilidade de pular de árvore em árvore. Moritolyf foi encarregado de proteger a pedra, a vigiando dia e noite, e se alguém ousasse tentar a roubar ou destruir, ele gritava tão fortemente que todos os animais próximos vinham o ajudar, reunindo-se para proteger a pedra rara. Após um dilúvio causado por um karaíba, Moritolyf se refugiu no céu, mas arrumou tantos problemas com as outras estrelas que Îasý, a Lua, mandou que a pedra fosse guardada pelos humanos, e que, falhando em tal missão, o mundo deles seria destruído.

4. Como podemos ver, através de um complexo esquema narrativo, imprimindo uma biografia a determinados entes do mundo material, é como os Tupinambá exprimiam seu entendimento das coisas, em oposição ao ocidental, que o faz de forma descritiva. Como podemos ver, de facto a destruição da relação de "sacralidade" entre os humanos e a pedra de Maíra-monã resultou no colapso efetivo do mundo Tupinambá, mesmo que o entendimento ocidental tenha dado causas completamente diferentes. Isso prova per se como nada inócua e inefetiva é a visão indígena.

5. Esse mesmo esquema é usado para a compreensão de tudo que está ao redor da sociedade humana imediata, isto é, a aldeia, e assim plantas, árvores, animais, pedras, montanhas, etc. que tenham uma função social dentro do grupo são compreendidas enquanto pessoas, sujeitos, com seus próprios sentimentos, disposições, conhecimentos e capacidades. É, aliás, um modo estritamente lógico e racional de pensar, no qual a manutenção da sociedade (entendido como o todo desenvolvido entre entes humanos e não humanos) está em primeiro lugar. 

b. Perspectivismo
1. Após ser introduzido na noção de relacionalidade animista no item b, que é uma modalidade de pensamento mais comum pelo mundo não judaico-cristão como um todo, uma das características mais distintivas do pensamento indígena é o perspectivismo, tal elaborado pelo antropológo Viveiros de Castro em obras como A Inconstância da Alma Selvagem (2002) e outras.

2. O pensamento perspectivista desenvolve-se a partir da experiência prática da vida humana, expressa na cadeia alimentar, a partir de três categorias de perspectivas básicas de seres:  (1) os predadores absolutos, comedores de humanos e outros animais; (2) os humanos, o predador intermediário; (3) os animais que são caçados, isto é, herbívoros ou onívoros que não caçam. Temos assim: 1 come 2 e 3, mas 2 também come 3 [4]. Consideremos três animais: (1) o jaguar, isto é, a onça-pintada, (2) o humano e (3) um tapir, isto é, uma anta. Eles não são categorias fixas, mas ao invés disso, pontos de perspectiva. 

3. A grande questão desse esquema é a seguinte: cada animal vê a si mesmo e aos seus semelhantes como um humano. Nesse sentido, a humanidade é a categoria "neutra" o ponto de partida de qualquer self [eu], não importa de que espécie seja.

4. Vamos aos exemplos, que como sempre facilitam. Imagine a seguinte cena: 

Um Tupinambá A, vamos chamá-lo de Nhaẽpepógwasu, que obviamente se vê como um humano, sai para caçar na mata. Ele então encontra ali, tranquilamente farejando o chão, um tapir B. Só que o que ele não percebe é que havia ali um jaguar C, seguindo o rastro dele.

Esse é o mundo tal qual descrito do ponto de vista de Nhaẽpepógwasu, o ente A.

Mas então assumindo a perspectiva do ente B, o tapir, quando ele olha para trás e vê Nhaẽpepógwasu (A), ele não o enxerga como um humano, mas sim como um ser da categoria 3, um jaguar, pois o tapir é um animal de caça. Além disso, o próprio tapir está o tempo todo se vendo como humano, um ser da categoria 2 e não da 1.

III. Da mesma forma, o ente C, o jaguar, enquanto olha para Nhaẽpepógwasu, vê a ele como um tapir ou outro animal de caça, um ente da categoria 1, e a si mesmo como um ente da categoria 2, isto é, um humano.

5. Em termos abstratos podemos colocar o exemplo anterior assim:

Se 1 = animal de caça, 2 = humano e 3 = predador carnívoro absoluto, então:
Para A: A = 2, B = 1 e C = 3
Para B: B = 2, A = 3 e C = 3
Para C: C = 2, A = 1 e B = 1

6. Ou seja, a natureza fenomênica, o mundo tal qual aparece não é único, mas depende da perspectiva de quem a observa. Assim temos muitas naturezas (multinaturalismo) olhadas sob o ponto de vista de uma cultura única, isto é, o ser-no-mundo humano, que é comum a todos os seres. Longe de ser um pensamento abstrato é uma derivação lógica da vida material dos indígenas. Tome-se um exemplo histórico, relatado pelo alemão Hans Staden em sua estada entre os Tupinambá:

... Cunhambebe tinha diante de si um grande cesto cheio de carne humana. Comia de uma perna. Segurou-a frente à minha boca e perguntou se eu também queria comer. Respondi: "Um animal irracional não come um outro igual a si, e um homem deveria comer um outro homem?". Então ele mordeu e disse: "Jauára ichê [Îagwara ixé]. Sou uma onça. É gostoso" (Staden, 2010 [1557], p. 110).
Isto é, ao comer carne humana Kunhãbebe assumia a perspectiva 3, do predador absoluto, o jaguar; para ele o sangue humano é kauĩ, a bebida produzida a partir da fermentação da mandioca.

c. Fronteiras da humanidade
1. Após ver que os conceitos de natureza e sociedade entre os Tupinambá, como para outros indígenas americanos, resta aprofundar um conceito importante lançado (ver item a especialmente o §4): a questão das fronteiras da humanidade.

2. Parece ser uma característica mais ou menos geral, encontrada entre diversos povos indígenas sul-americanos, de vários troncos linguísticos como Tupi, Jê e Yanomami (reflexos disso existem também no mundo indo-europeu, como os germânicos pagãos) a característica de enxergarem a categoria da humanidade aplicada ao grupo humano e àqueles que se reconhecem como imediatamente semelhantes culturalmente [5].

3. Num exemplo prático: os Tupinambá enxergavam o mundo conhecido por eles como "o" mundo par excellence [por excelência], e o mundo desconhecido como um mundo-outro, uma espécie de além-mundo, em especial o outro lado do mar oriental. É como se aquilo que fosse possível conhecer, o mundo medido com o caminhar tivesse o caráter de mundo verdadeiro; a geografia étnica não corresponde exatamente à material.

4. Tome-se por exemplo a noção cosmológica Krahô (Jê): o céu é sustentado por seis árvores, os Khoikwakhrat ou Pé-de-Céu, dois a leste e a oeste, e um a norte e ao sul. Esses pilares são atacados por pica-paus (Cupen Xai) que nunca conseguem, todavia, destruí-los antes que possam se regenerar (Aldè 2013, pp. 27-8). A história lembra em estrutura outra, de um povo distante e sem contato com os Krahô, os Yanomami. Estes igualmente reconhecem o céu sustentado e sofrendo um risco de cair por ataque desenfreado dos recursos naturais (Albert, 1999). Assim como a história Tupinambá da pedra de Maíra-monã contada por Thevet (reproduzida em b §3), todas essas narrativas contam da necessidade de se preservar o "mundo étnico" do povo em questão, identificado com "o mundo" para cada um deles. O que está fora do mundo étnico é outro mundo, como se estivesse fora do que chamamos de "planeta", é uma outra realidade, um mundo-outro.

5. Assim, os humanos que vêm de além-mar ou de lugares distantes, para os indígenas, vêm igualmente desses mundos-outros e são humanos-outros, e em alguns casos totalmente outros, não humanos. "Cupen" no idioma Krahô, significa "não-índio" (Aldè 2013, p. 30), mas é também parte da designação do pica-pau que ataca os pilares do céu (Cupen Xai). Entre os Yanomami os brancos ainda são chamados de napë pë, que é uma categoria de seres hostis que não é algo racial. Também são napë pë aqueles espíritos que causam doenças contra os quais o paîé Yanomami precisa lutar para curar a comunidade (Albert, 1999). Algo semelhante acontecia entre os Tupinambá: os franceses eram chamados de "maíra", exatamente como o herói fundador mítico do povo (ver 2). Em tupi antigo não há uma palavra para "ser humano"; há "abá" que designa os nativos, "peró" que designa os portugueses e "maíra" para os franceses — a rigor esses eram quem os Tupinambá dos séculos XVI e XVII tinham contato. Uma palavra que designasse aos três grupos em conjunto era inexistente; peró e maíra não eram abá, ou seja, não eram humanos no mesmo sentido que os Tupinambá.

6. A essa altura podemos rever algumas noções e estabelecer conclusões iniciais:
"Humano", "sociedade", "Natureza", "mundo" e "espírito" não são definições estritamente materiais, como no pensar ocidental, mas relacionais.
Obviamente, os maíra e peró se veem como humanos porque todos os seres se veem assim (ver c).

d. Dividualismo
1. Como consequência das conclusões anteriores (d §6), a própria concepção de indivíduo vem a se tornar obsoleta dentro do mundo indígena, ao menos na acepção que é tomada no mundo ocidental. Formada de duas partes, in-divíduo, literalmente significa algo como "não-divisível", e se aplica a cada ente humano (abá).

2. Mas os entes humanos Tupinambá não são indivíduos, eles são, em si, divididos. A personalidade, c'est-à-dire [por assim dizer],  é uma característica do grupo. É por isso que escreve-se "Tupinambá", no singular e em inicial maiúscula, exatamente como o nome próprio de uma pessoa, porque Tupinambá é uma pessoa que se manifesta através de vários entes humanos dividuais. "Tupinambá" é o indivíduo, cada um dos Tupinambás é apenas uma parte dele, células no corpo.

3. Esse complexo indivíduo-coletivo manifesta sua própria vida a partir de diversas formas como língua, costumes, tradições e visão de mundo. A ele corresponde um determinado espaço geográfico, uma paisagem cultural que é cheia de significados, e mesmo parentes; em certo sentido também as árvores e pedras englobadas no espaço em que o povo vive passam a fazer parte dele, são também divíduos Tupinambá, novamente é útil lembrar do exemplo da pedra de Maíra-Monã (ver b §3). É nesse sentido que a queda do que chamamos acima de "mundo étnico" equivale à morte de uma grande pessoa, porque é o que exatamente é, de um ponto de vista não-ocidental (ver d §4 e 5). Esse "mundo étnico" é apenas uma outra forma de se chamar um "povo indígena".

4. A mentalidade dividual foca no que há de semelhante, isto é, nas relações dos objetos entre si e das pessoas entre si, enquanto as mentes individuais focam nas diferenças e ignoram as semelhanças.

5. Esse tipo de psicologia parece ser o que pode explicar a tranquilidade com que os indígenas que iam ser mortos nos rituais antropofágicos como o exposto por Hans Staden, no qual a certeza dos parentes vingarem-se fazia com que o guerreiro capturado não temesse a morte e mesmo fosse vergonhoso para ele fugir do cativeiro (Staden 2010 [1557], p. 91; Métraux 1979, p. 118). Se a manutenção do ethos do grupo (ou seja, a vida do indivíduo-coletivo) dependia da morte do divíduo, ele assim encarava sem mais problemas — sua essência individual não morreria com seu fim pessoal, ela estava nos parentes vivos.

Notas
[1] Essa distinção é apenas idealmente algo bem definido. No nível prático, os que veem a si mesmos como brancos em geral excluem da humanidade em várias ocasiões aqueles que não fazem parte da mesma classe social, não falam o mesmo idioma, não tem a mesma cor de pele ou não compartilham o mesmo modo de pensar ganancioso. Em várias ocasiões uma segunda classe de humanidade, relegando a uma posição tutelada pobres, negros, indígenas, etc. é usada de forma não explícita, colocando a primazia do direito e existência — e por consequência a verdeira humanidade — no humano ocidental rico, branco, em especial o "latifundiário" e o "empreendedor urbano", os modelos ideais dentro do pensar ocidental, relegando aos tutelados uma posição em que não podem responder por si próprios. No ocidente, humanidade é associada à liberdade de decisão e liberdade de decisão é associada a dinheiro.
[2] Thevet diz que seus nomes são "Iachu" e "tatà", os quais são aparentemente as palavras em tupi antigo para Lua, Îasý, e fogo, Tatá .
[3] Esse nome certamente não está correto, o tupi antigo não tem os sons /l/ nem /f/.
[4] Algo curioso é que o jaguar sul-americano possui uma posição similar ao dos ursos no norte da América e noroeste asiático, isto é, ocupa a posição 3, o predador absoluto, na cadeia alimentar. Todavia, enquanto povos nativos do norte da américa e noroeste da Ásia possuem um complexo ritual no qual caçam e comem o urso, os sul-americanos nativos não comem a carne da onça, mesmo nas raras ocasiões em que a caçam.
[5] Veja a nota 1.

Bibliografia
ALBERT, Bruce (1999). Povos Indígenas do Brasil: Yanomami. In: Instituto Socioambiental. <pib.socioambiental.org/pt/povo/yanomami/581>. Acesso em 27/07/2018.
ALDÈ, Veronica (2013). Sustentando o Cerrado na Respiração do Maracá: conversas com os Mestres Krahô. Brasília, Dissertação de Mestrado.
MÉTRAUX, Alfred (1979). A Religião dos Tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis. Prefácio, tradução e notas de Estevão Pinto. 2 ed. São Paulo, Brasiliana.
STADEN, Hans (2010 [1557]). Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. Trad. Angel Bojadsen. Porto Alegre, L&PM.
THEVET, André (1575). La Cosmographie Vniverselle d'André Thevet Cosmographe dv Roy. Ilustree de diverses figvres des choses plvs remarqvables vevës par l'auteur, & incogneuës de noz Anciens & modernes. Tome Second. Paris. pp. 913b-920b.

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