Versão antiga: Sobre este espaço (26/07/18)

Já há algum tempo a religião dos povos originários do Brasil me interessa. Todavia, a questão do reavivamento das religiões étnicas no Brasil possui grandes problemas que não podem ser de forma alguma ignorados.

O primeiro deles é que no Brasil, apesar de provavelmente todos os estados possuírem indígenas, estes são tratados como cidadãos de segunda classe, algo exótico, quando não inferior. Uma das consequências diretas disso é a falta de informações descritivas de suas crenças, cultura, rituais, etc.

Outro, é que a maior parte dessas obras, em geral produzidas por antropólogos, encontra-se em versões impressas ou raras ou caras demais para facilitar seu acesso. Tenho plenas convicções de que muitas lacunas que aqui inicialmente existirão são dependentes de minha própria dificuldade financeira de pagar por materiais que elucidem pontos que para mim estão em aberto.

Adiante, nos deparamos com a confusão de informações. Os grupos étnicos nativos da região que é hoje o Brasil são diversos, amplos e extremamente férteis em suas variações culturais. Embora ao olhar brasileiro, isto é, colonizador, os indígenas pareçam formar um todo unificado por características exóticas como a falta de roupas, uso de penas e pintura corporal, danças rituais e habitar em ocas, isso é tão descritivo quanto dizer que brasileiros vestem roupas, moram em casas de tijolos e têm ruas asfaltadas para descrevê-los. Existem variações culturais que não podem ser ignoradas, e geralmente o são na tentativa de unificação de uma identidade indígena pan-brasileira generalizada, ignorando as divergências de grupos nativos.

Superado parcialmente este ponto (que é o que um reconstrucionismo exclusivamente tupinambá intenta) lidamos com o fato de que as fontes primárias são, em geral, francesas ou portuguesas. O olhar do europeu em seu contato com o "novo" mundo quase nunca falou mais do indígena do que de si mesmo, e o mesmo vale para muitas das fontes mais modernas, que ainda no século XX tratam a cultura tupinambá ou de qualquer outro grupo indígena brasileiro como "atrasada", e "primitiva" em seu sentido pejorativo. Isso levou, como ver-se-á em análises futuras, a sincretismos absurdos como o de Pai Sumé e Tomé, o apóstolo.

Isso em si não seria um problema, tivessem os tupinambás sobrevivido de forma mais clara às ondas de invasão europeias. Como a religião que aqui intentamos reconstruir é essencialmente um fenômeno vivo e em constante desenvolvimento, não dogmatizada por textos canônicos nem organização reguladora centralizada, é de se esperar que, não fossem os europeus, hoje ela fosse um fenômeno bastante diverso. Isso nos coloca num ponto de entrave com os povos tradicionais do Brasil ainda vivos, uma vez que esse sistema reconstruído pode e, na verdade, é esperado que divirja de suas religiões e culturas vivas, embora saibamos que de certa forma eles estão "mais corretos" do que nós, por não terem sofrido o total apagamento de sua cultura em prol da "europeização" e cristianização, como aconteceu conosco. Não descarto, assim, quando pertinente, usar lições de povos indígenas brasileiros ainda vivos.

Além disso, encontra-se como problema a dificuldade de acesso a indígenas reais ou pessoas interessadas em reviver esse sistema de crenças. Isso torna a prática complexa e solitária num primeiro momento, e, portanto, um fenômeno experimental e passível de correções e reviravoltas e superações de ideias, com o decorrer do tempo. Pode ser que tudo que eu disse em algum momento seja revisto e reescrito.

Outro grande empecilho atualmente é a influência do movimento Nova Era (New Age), em si, um subproduto da mentalidade colonizadora branca, roubando dos povos indígenas uma das coisas as quais seus ancestrais mais se esforçaram por apagar, suas identidades religiosas. O movimento Nova Era, longe de ser um todo unificado ou mesmo um termo que a maioria das pessoas sob sua influência aceitam para si, é, na verdade, pautado num interesse legítimo de populações civilizadas por povos originários, embora, quase sempre, incapaz de largar a comodidade e a cadeia de estruturas sociais, intelectuais, e o modo de vida urbano e eurocentrado. Superar a metodologia espiritual baseada na apropriação cultural, individualismo, e pouco ou nenhum respeito prático pelos povos originários é um desafio posto a um reconstrucionismo tupinambá.

Fruto desta influência, outro problema é justamente a mentalidade do autor. Embora eu me esforce legitimamente para um entendimento e compreensão dos indígenas tentando ver o mundo através dos seus olhos e mais ouvindo do que falando, mais perguntando que afirmando, eu mesmo sou uma mistura de indígenas com brancos e negros, sendo que, pelo meu fenótipo, seja impossível de se distinguir de qual grupo eu tenha ascendência dominante. Embora a genética não possua influência determinante nisso, ela trai a minha própria formação cultural, que é, na verdade, mais branca do que eu gostaria. Isso me colocará sempre em posição de cidadão de segunda classe perante um real indígena, e estou com plena convicção de que não possuo, baseado em livros, nenhuma autoridade para discutir com aquele que recebeu uma tradição viva, passada por gerações. É possível e esperado que em muitos momentos eu erre, e é necessário e esperado que eu, como já salientei, corrija esses erros.

Derivado disto, um problema nada pequeno são os vícios da mentalidade civilizada brasileira quando volta seu olhar para religiões étnicas. Apesar de algum conhecimento sobre essa variedade de religiões, cada povo é um universo em si mesmo, e suas visões de mundo, apesar de carregarem similaridades marcantes sempre trazem nuances necessariamente particulares, as quais podem passar despercebidas para a maioria das pessoas civilizadas, como o hábito sagaz de sempre procurar divindades, ou categorias religiosas de suas religiões conhecidas. No meu atual entendimento da religião tupinambá, muito do que os europeus consideravam como atraso intelectual ou religioso era na verdade sua própria incapacidade de entender manifestações religiosas diversas daquelas dos seus próprios ancestrais romanos, gregos e cristãos. Esse erro ainda é muito comum atualmente.

Numa etapa inicial, a fonte central que utilizarei serão a obra de Alfred Métraux, A Religião dos Tupinambás e suas relações com a das demais tribos tupi-guaranis, com prefácio, tradução e notas de Estevão Pinto, 2ª edição, 1979, além de Jean de Léry, Viagem à Terra do Brasil, com tradução e notas de Sérgio Millet, 1961. Outras fontes poderão ser consultadas, mas, pela aparente vastidão e completude da obra de Métraux, meu foco será nela. Essa é a única obra física que possuo, e versões digitais de Thevet e outros autores contemporâneos aos tupinambás ou são inexistentes, ou encontram-se em fotocópias de edições demasiado antigas e em um francês ilegível a mim no momento.

Espero conseguir superar tais problemas tanto quanto possível mas estou ciente que poderei limitar-me em algum momento, e aceitarei de coração aberto as críticas. O objetivo aqui não é estar mais certo do que ninguém, mas ser o mais verdadeiro para comigo mesmo, para com os ancestrais indígenas e suas práticas, num recorte essencialmente em torno dos séculos XVI-XVII, e para com as forças espirituais a eles associadas. Um reconstrucionismo tupinambá não é essencialmente um saudosismo ou uma abordagem estática e presa ao passado, tentando recriá-lo no presente, mas, na verdade, uma tentativa de embasar o presente e o futuro numa tradição (em seu sentido literal, e entendendo que a tradição é um recorte seletivo que o presente faz do passado para guiar-se), e continuar a desenvolver-se, como é natural a todo caminho vivo.


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