Kaeté

Kaeté Ixé: Existir como Desaparecer


O povo indígena tem regado com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros do Brasil. Vossas Excelências são testemunhas disso.
Aílton Krenak

Me sinto obrigado a dizer que toda vez que penso no nome "Kaeté" o meu coração se enche de uma amargura e luto, e espero conseguir com as minhas humildes palavras demonstrar a razão pela qual eu vejo tanta alma, tanta dor e tanta beleza na história desse povo. Se não, me contento em lhes mostrar apenas um minúsculo fragmento delas, na impossibilidade de guardar tamanhas paixões e dores dentro de mim.

"Kaeté" é uma identidade étnica que perdeu suas pessoas. Eu sou uma pessoa que perdeu sua identidade étnica. Dessa dupla necessidade eu, como nativo do local um dia habitado pelos Kaeté, (res)surjo como indígena, ao mesmo passo que os Kaeté em mim reencontram sua expressão e vida. Mas, quem foi esse povo fantástico?

O nome Kaeté (variantes Caeté, Caheté, Caetés, Cahetés) vem do tupi antigo (idioma tupinambá, o tupi da costa oriental) ka'a, "mato, folha, floresta" e o sufixo eté, que designa grande intensidade (e em alguns casos quantidade), talvez formando um etnônimo original *ka'a-eté. Os Kaeté habitavam a costa do Atlântico entre os rios Paraíba e o São Francisco (lat. 8°-ir S., long. 36° O.) de acordo com Métraux (1948: 96) e Hemming (1978: 82-83). Isso equivale a dizer que "os Kaeté estabelecer-se-iam do São Francisco para o norte, até as vizinhanças de Itamaracá" (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992: 437). Tal território corresponde, grosso modo, ao sul do atual estado do Pernambuco e o território de Alagoas.

Teriam chegado aí entre cerca de 800 e 1.000 dC, se formos considerar o modelo de migrações em forma de "pinça" dos Tupi-Guarani proposto por Brochado (Fausto, 1992: 384), no qual os Tupi vêm pela costa norte do Brasil a partir do Alto Amazonas.

Estima-se que no século XVI, do São Francisco ao Sergipe haviam (aproximadamente) 50.000 pessoas e em C. Sto Agostinho, 25.000, totalizando cerca de 75.000 Kaeté (Hemming, 1978: 496).
Eles eram um povo de língua Tupi, e pela sua localização costeira, podem ser classificados sob o grupo dos Tupinambá (Fausto, 1992: 383; Cunha e Castro, 1985: 57; Métraux, 1979: XXXIII), usado aqui como termo genérico e não específico.

E isso é quase tudo que se sabe de "bom" desse povo. As poucas memórias restantes dos Kaeté estão mergulhadas em muito sangue.

A começar pelos conflitos com outros indígenas: "Graças às suas grandes embarcações, os Kaeté constantemente vinham, ao longo da costa, saltear os Tupinambá [entendido aqui em um dos seus sentidos restritivos] junto da Bahia, enquanto pela parte do sertão confinavam com os Tapuia e Tupinaê, com os quais também guerreavam" (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992: 436). Eram ainda, ao norte, no rio Paraíba, inimigos dos Potiguara, contra quem faziam guerras cruéis (Hemming, 1978: 82-83). Desta vocação guerreira Kaeté, restou a memória de seus barcos, os quais carregavam cerca de 10 ou 12 pessoas cada em incursões de guerra (Métraux, 1948: 109).

Mas os Kaeté também estavam em guerra com os portugueses do Pernambuco, ao Norte, e da Bahia, ao sul: seus únicos aliados eram os maíra, os franceses (Hemming, 1978: 82-83). Nessa época, os reinos francês e português ainda disputavam os territórios do que estava vindo a ser o Brasil, e ambos exploravam as inimizades dos povos nativos para tentar alçar influência e domínio na região:
Logo ao sul de Itamaracá e do território Potiguara estava a capitania de Pernambuco, a qual rapidamente tornou-se a mais bem sucedida e mais rica das colônias. Esta era a Nova Lusitânia, cheia de pau-brasil e com terras planas e férteis perfeitas para cultivar cana de açúcar. Ela caiu nas mãos do mais enérgico donatário, Duarte Coelho, que 'construiu uma torre de pedra e calcário na altura onde a cidade de Olinda agora está. Muitas vidas foram perdidas e ele gastou muitos milhares de cruzados que ele tinha conseguido na Índia defendedo-a contra os índios e os franceses e limpando a costa, que estava infestada pelos Kaeté'. (Hemming, 1978: 72; grifo e tradução meus).

Saltam aos olhos aqui algumas coisas. Primeiro, a capitania de Pernambuco era a Nova Lusitânia, e isso porque ela era repleta de pau-brasil e a com terras planas e férteis, ideais para o cultivo de cana-de-açúcar, o que consequentemente a transformou na colônia mais rica e com maior sucesso. Isso é o total oposto do que se imagina de um estado nordestino, na atualidade, no imaginário popular brasileiro.

Em segundo lugar, aqui está a gênese do pensamento colonizador lusófono: a costa do Brasil estava infestada [sic] pelos Kaeté. O indígena é aqui uma "praga" um "parasita", isto é, "algo que deve ser exterminado", uma vez que está no caminho dos planos do colonizador para as terras que não pertenciam por direito aos europeus, mas sim aos seus habitantes nativos. Esse pensamento tipificador e excludente, que subtrai dos indígenas a humanidade, é visto ainda hoje nas políticas (anti-)indigenistas do Brasil. E ele está na gênese não de um, mas de vários holocaustos desde o século XVI, entre eles o dos próprios Kaeté.

Os Kaeté foram tratados com tanto desprezo que sua cultura intelectual e material foi totalmente destruída. Ao europeu não interessou uma vírgula dos hábitos daqueles que aqui estavam, exceto quando isso servia aos interesses portugueses, por "justificar" sua aniquilação.

O bispo Sardinha e o massacre dos Kaeté

Em cerca de 1555 Jerónimo de Albuquerque escreve ao rei de Portugal que, em dois anos de confronto, os dois maiores moinhos de açúcar da Capitania de Pernambuco haviam sido perdidos. A colheita de açúcar havia sido pesadamente reduzida e os colonos estavam sofrendo financeiramente. Com ajuda dos franceses, os Caetés forçavam ao sul e os Potiguara ao norte. Ao fim dos anos 1550, novamente os povos indígenas do então Pernambuco saíram em guerra contra os portugueses (Hemming, 1978: 74). Como podemos ver, a resistência foi forte, e por muito pouco não foi suficiente para uma derrota permanente dos colonizadores lusófonos. Nessa época, os portugueses não podiam avançar mais que umas poucas milhas de Olinda. A colonização luso-brasileira estava em profunda crise:

As autoridades coloniais não estavam preparadas para pagar colonos que lutavam para defender ou expandir a colônia. Não havia nada para atrair os colonos das suas lavouras para encarar as dificuldades da selva e cerrado e a possível morte pela fome ou pela flecha de um índio. As selvas brasileiras não continham espólios para serem capturados por eles, cidades para saquear ou cativos importantes para exigir resgate. A única forma de lucrar para financiar tais guerras era a venda de prisioneiros como escravos. Qualquer particular tribo problemática - os Kaeté ou Aimoré, por exemplo - tornava-se objeto de uma guerra 'legítima ou justa': uma campanha na qual os objetivos eram a destruição da tribo como uma força de batalha, a ocupação do seu território, e a escravização de seus homens e mulheres. As pessoas das vítimas pagavam pela guerra que destruiu a eles. Esse foi o retorno ao antigo código de guerra onde derrota significava escravização. Vae victis! (Hemming, 1978: 150, tradução minha).

A economia da colônia portuguesa na América do Sul então só tinha um combústivel para seu motor: sangue humano. Mas, como eu deixei explícito antes, a história dos Kaeté ainda tinha algo de "bom" a ser contado; e como eu também deixei claro, todo o resto da história deles estava mergulhada em sangue:
Os primeiros jesuítas que chegaram ao Brasil em 1549 com a aprovação do governador real, Tomé de Sousa. Mais jesuítas chegaram na frota trazendo o segundo governador, Duarte da Costa. Mas a tarefa de servir ao número crescente de colonos e um infinito número de tribos de nativos era demais para esses poucos missionários. Nóbrega, o líder deles, sugeriu que o Brasil precisava de seu próprio bispo, do clero 'secular' em oposição aos 'regulares' ou 'religiosos' das ordens monásticas ou missionárias. Papa Júlio III aprovou a nova diocese em 1551, e Pêro Fernandes Sardinha (o enviado que tinha sido alarmado pela aparição na França de Caramuru e sua esposa índia) foi enviado como primeiro bispo do Brasil. Ele provou ser um velho inflexível que gerou uma amarga rixa com o Governador Duarte da Costa. Ele reclamou ao Rei que Costa e seus filhos incontroláveis governavam despoticamente e encorajavam os colonos mais sem-lei. O Governador reclamou que o Bispo estava impedindo sua admnistração e tinha humilhado alguns colonos tendo-os despido até a cintura, amordaçado e os forçado a cumprir penitência pelo terrível crime de imitar os índios - ao fumar tabaco. Nem o Governador nem o Bispo estavam preocupados com o bem-estar dos índios: o Governador orgulhava-se a si mesmo de subjugá-los pela força das armas, e o Bispo geralmente os ignorava.
A querela ficou tão grave que o Bispo Sardinha finalmente zarpou com muitos colonizadores enraivados para reclamar do Governador para o Rei. Mas em 16 de junho de 1556, o navio Nossa Senhora da Ajuda naufragou em água rasa na metade do caminho entre Bahia e Pernambuco, entre as bocas dos rios Coruripe e São Francisco. Como os sobreviventes assustados alcançaram a margem eles foram todos capturados pelos Kaeté, implacáveis inimigos dos portugueses. Eles tentaram dizer aos índios 'que aquele homem era um Grande Prelado dos portugueses, um padre consagrado de Deus que iria se vingar dos excessos deles. Mas nada penetrou nos corações duros deles. Eles golpearam o prelado sagrado com um porrete sacrificial e partiram a cabeça dele ao meio. Eles fizeram o mesmo com os companheiros dele e carregaram-nos para se tornar a provisão favorita dos estômagos deles, e os ossos serem insígnias de tão grande ato. E esse foi o fim do primeiro bispo do Brasil'. Junto do Bispo, os Kaeté desnudaram, amarraram e sacrificaram em seguida 'Antônio Cardoso de Barros, o Chefe do Tesouro, dois cônegos e duas matronas nobres, muitos nobres e muitas outras pessoas: mais de uma centena de brancos no todo, sem contar os escravos' (Hemming, 1978: 81-82, tradução minha).
Por delicioso e bem merecido que fosse, na verdade, esse ato heróico era tudo que estavam esperando os portugueses. Veja como a retórica da época soa extremamente semelhante à dos ruralistas, evangélicos e seu líder fascista na atualidade:
Quando os Kaeté mataram e comeram o primeiro bispo do Brasil, Nóbrega, que normalmente defendia os índios contra os colonizadores, explodiu num estouro de fúria nacionalista. 'Eu não entendo como a raça Portuguesa, a qual é a mais temida e obedecida em todo o mundo, está pacientemente suportando e quase se sujeitando nessa região costeira aos mais vis e miseráveis pagãos de toda a humanidade' (Hemming, 1978: 106, tradução minha).
Como vimos, Duarte da Costa, o governador, tinha suas querelas com Sardinha, o bispo, e nada achou ruim na morte dele. Ao governador, a morte de Sardinha serviu como dupla vantagem: por um lado, removia o clérigo inimigo de seu caminho, por outro deu-lhe a carta branca para prosseguir seu genocídio, em mais potência do que nunca:
Os Kaeté tinham sido advertidos da punição divina pela execução do Bispo Sardinha. E ela veio logo. Uma aliança dos tradicionais inimigos deles, Tupinambá da Bahia e dos Tupina vivendo no interior derrotou-os, forçando-os a descer para a enseada do mar, e mataram e comeram todos os que não conseguiram escapar para as encostas. 'Os vitoriosos... venderam um infinito número deles como escravos aos colonos de Pernambuco e Bahia em troca por mercadorias. Caravelas de escravos regularmente foram ali e retornavam abarrotadas com esse povo'. Os Kaeté responderam contra os Portugueses ao norte e ao sul deles e os aliados Tupinambá (Hemming, 1978: 85-86, tradução minha).
Ou seja, a história dos índios preguiçosos que não queriam trabalhar e exigiam dos civilizados portugueses a importação de força de trabalho negra não passa de uma deslavada mentira. Inúmeros Kaeté foram escravizados, o que gerou uma fome ainda maior de força de trabalho: "Os colonos da Bahia estavam clamando para serem deixados capturar mais índios como escravos"(Hemming, 1978: 86, tradução minha). Isso se tornou um ciclo vicioso, que, poucos anos depois, levou a medidas incompatíveis com o "crime" cometido pelos Kaeté. Lembrando que o tal "crime" dos nativos foi lutar contra o estabelecimento de uma potência estrangeira que os via apenas como escravos, obrigados à cristianização, isto é, ao abandono de sua própria cultura nativa, em suas terras originárias. Mas o direito não estava do lado correto da história, como aliás, é bem comum na América do Sul:
O Governador Mem de Sá decidiu apaziguar a eles [os colonos da Bahia], lançando uma campanha para eliminar os Kaeté. Ele proclamou guerra oficial contra eles em 1562, com qualquer prisioneiros sendo suscetíveis à escravidão. Os jesuítas tinham então feito muitas conversões entre os Kaeté. Mas os contentes colonos viram a proclamação como uma licença aberta de caça contra qualquer Kaeté. Os jesuítas viram horrorizados enquanto os portugueses carregavam homens, mulheres e crianças embora, e atacaram quaisquer índios que eles encontrassem nas estradas sob o pretexto de que eles eram Caeté. Os índios não tinham recursos legais, e aqueles que tinham aceitado o cristianismo não estavam mais aptos para uma resistência armada. Eles não ousaram aventurar-se fora das plantations deles. A única salvação era fugir para as florestas, e quatro missões localizadas entre trinta e uma centena de milhas ao norte da Bahia foram rapidamente abandonadas (Hemming, 1978: 86, tradução minha).
A resposta dos carniceiros portugueses estabelecidos no nordeste não foi nenhum pouco mais humanitária que o ultimato genocida de Mem de Sá:
A sentença pronunciada contra esses índios, que estavam estabelecidos além do São Francisco para Pernambuco, decretava a sua escravização, "onde quer que fossem achados sem fazer exceção nenhuma, nem advertir no mal que podia vir à terra", em face do que se arregimentou parte dos índios aldeados do recôncavo, deslocando-os para o sertão o que fez decrescer em muito o número de almas nas igrejas (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992: 436).
Essa foi exatamente a desculpa que os colonos estavam esperando. Eles abriram uma 'temporada de caça livre' contra qualquer Kaeté, pagão ou cristão, hostil ou amigável, e foram rapidamente escravizando quaisquer índios de qualquer tribo nos terrenos que podiam ser Kaeté. 'Nas igrejas dos Padres haviam muitos pagãos daquela origem [Kaeté] - mas nascidos e criados nessa parte da Bahia, e que não tinham tido parte naqueles assassinatos [do Bispo Sardinha e os companheiros dele]. Mas, como o Diabo sabe, esta foi a melhor invenção possível para destruir o que tinha sido feito e impedir o progresso da conversão dos pagãos. Ela foi ajudada pelo desejo dos portugueses de conseguir escravos. Assim, em poucos dias a terra inteira estava abandonada. Porque quando os pagãos viram que as suas mulheres e crianças, irmãos e irmãos estavam sendo cercados e atacados nas vilas deles e quando eles viajavam pelas estradas, e estavam sendo carregados como escravos mesmo quando eram nativos da terra, sem nenhum recurso legal, uma vez que os portugueses também alegavam que eles eram assassinos naquelas xacinas', eles fugiram (Hemming, 1978: 147-148, tradução minha).

O aniquilamento

Realmente não tenho estômago para resumir em minhas próprias palavras os próximos fatos, e me resigno a reproduzir trechos de Red Gold the Hemming:
As leis são apenas tão boas quanto aqueles que as reforçam. Nóbrega morreu no ano da nova lei, 1570, e Mem de Sá dois anos depois. Os jesuítas que sucederam Nóbrega estavam menos certos da injustiça da escravidão, e lhes faltava influência para oporem-se a ela. Os homens enviados para suceder Mem de Sá eram duros reacionários. O Rei tentou dividir o Brasil entre dois governadores, mas os dois estavam determinados a acelerar o crescimento da colônia através da escravidão se necessário e através de guerras de extinção das tribos hostis. Os dois governadores encontraram-se na Bahia em 6 de janeiro de 1574 como membros de outra junta sobre a liberdade dos índios. Eles livraram-se de todos os escrúpulos de Nóbrega e declararam que qualquer índio adulto podia vender-se a si mesmo em escravidão se ele quisesse. Eles ampliaram a definição de 'guerras justas' tanto que qualquer um poderia ser escravizado impunemente. O Governador do norte Luis de Brito de Almedia enviou um experiente caçador de índios chamado Domingos Fernades Nobre Tomacauna em pelo menos três longas expedições para capturar escravos nas florestas de Arabó e no interior de Ilhéus. Este governador encabeçou uma feroz campanha contra os Kaeté do Sergipe enquanto o seu colega do sul, Dr. Antônio de Salema, estava destruindo os Tamio de Cabo Frio. Simão de Vasconcellos escreveu que as decisões desse tribunal de 1574 serviram apenas como uma desculpa para grande aumento da escravidão. Escravizadores podiam agora reivindicar que os cativos deles tinham sido vendidos pelas próprias tribos deles, em adição ao usual pretxto de 'resgatar' da execução ritual, ou guerras justas. O cronista Gabriel Soares de Sousa, que era um rico latifundiário, enviou navios abarrotados de índios para vender como escravos em outras capitanias. Os índios tinham sido previamente classificados como menores legais. Os colonos facilmente distorceram esse conceito de minoridade para incapacidade. Gabriel Soares escreveu que os índios eram incapazes de viver em liberdade (Hemming, 1978: 151, tradução minha).
E eis que, após alimentar a inimizade e se usar da força dos nativos, os portugueses enfim os colocaram de um mesmo lado:
O rio Sergipe entre a Bahia e o Pernambuco era a casa de algumas tribos Tupinambá, e formavam um refúgio para os Kaeté e outros índios que tinham escapado das colônias portuguesas (Hemming, 1978: 173-174, tradução minha).
Sergipe não foi finalmente conquistado antes de 15 anos [circa 1602] quando Cristóvão Cardoso de Barros - de quem o pai tinha sido comido pelos Kaeté junto com o Bispo Sardinha - conquistou as tribos dos montes Baepeba. Ele matou 1.600 índios e capturou 4.000, e fundou São Cristóvão na boca do rio Sergipe. Os jesuítas foram então capazes de desenvolver vastos ranchos de gado nas terras que tinham sido habitadas pelo povo de Surubi. E Sergipe, o último canto de influência francesa na costa central do Brasil, foi finalmente colonizado (Hemming, 1978: 175-176, tradução minha).
Essa carnificina levou ao fim dos Kaeté, uma vez que "as frequentes guerras tê-los-iam consumido, restando deles apenas os que se internaram muito longe e os que se misturaram aos contrários, como escravos ou por casamentos" (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992: 436).

Ao ver que a situação havia fugido do controle, e mesmo que diversos indígenas que não eram Kaeté estavam sendo vitimados, como que num repentino ato de humanidade, Mem de Sá decide revogar sua medida, "sem êxito, contudo, já que os portugueses iam para as matas com resgate" (Dantas, Sampaio e Carvalho, 1992: 436). Hemming ainda assevera que "quatro missões jesuítas próximas ao território Kaeté rapidamente declinaram de 20 mil para mil habitantes" (1978: 148, tradução minha):
Mem de Sá viu que a guerra dele contra os Kaeté estava sendo abusada e a revogou. Ele conseguiu libertar alguns índios erroneamente escravizados, incluindo quarenta pupilos de um colégio jesuíta. Mas em 1587, 'aqueles pagãos tinham sido tão completamente consumidos que os únicos sobreviventes agora eram aqueles que fugiram para o interior ou misturaram-se com os inimigos como escravos ou casaram-se com eles' (Hemming, 1978: 85-86, tradução minha).

O presente

Para mim, como natural das terras um dia habitadas pelos Kaeté, é impossível não me revoltar com a história nua e crua do povo que aqui viveu, e foi chacinado e escravizado pela ambição dos europeus. Alagoas hoje está submetida ao coronelismo e especulação de mineradoras, canavieiros e a indústria fumicultora. O agreste e o sertão se tornaram ambas regiões extremamente quentes pela ausência de sua mata original, as espécies nativas de animais, vítimas de uma caçada inconsciente e predatória, praticamente desapareceram nos últimos anos. Os rios e açudes têm secado, a barragem em Paulo Afonso (BA) toma a água que deveria ir para o agreste e o cantar noturno dos sapos é cada vez mais raro. Todavia, a cultura da mandioca e macaxeira (e do próprio fumo) pelas famílias mais pobres ainda traem a origem cultural da qual somos provenientes, em oposição aos canavieiros, diretos descendentes dos carniceiros da Capitania de Pernambuco.

A retomada da história Kaeté é uma atitude de resistência por parte de nós, seus descendentes hoje misturados em meio à civilização ocidental brasileira, o parasita que suga e destrói essa terra. Temos muito o que aprender. Mas, se a vingança tem mesmo um caráter ontológico na mentalidade Tupi, como querem Cunha e Viveiros de Castro (1985), já sabemos quem é o alvo de nossa vingança perene: não os Tupinambá, Potiguara e descendentes das tribos de outrora, mas aqueles que nos negam a nossa história e fazem de nós meros reprodutores de um modo de produção que nos desumaniza e destrói tudo ao nosso redor. Os Kaeté foram mortos pois estavam certos, e como dizem os Araweté, "só os mortos esquecem". Mas ainda estamos vivos.

E que assim comecem os Kaeté-Akwyra, os Novos Kaeté.

REFERÊNCIAS:

CUNHA, Manuela L. Carneiro da; CASTRO, Eduardo B. Viveiros de (1985). Vingança e temporalidade: O Tupinambás.
DANTAS, Beatriz G.; SAMPAIO, Augusto L.; CARVALHO, Maria Rosário G (1992). Os povos indígenas no nordeste: Um esboço histórico. In: CUNHA, Manuela L. Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras, 2ª ed.
FAUSTO, Carlos (1992). Fragmentos de história e cultura Tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela L. Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras, 2ª ed.
HEMMING, John (1978). Red gold: The conquest of the Brazilian Indians. Massachusetts, Harvard University Press.
MÉTRAUX, Alfred (1948). The Tupinamba. In: STEWARD, Julian H. (org.). Hamdbook of South American Indians. Vol. 3. Washington, United States Government Printing Office.
MÉTRAUX, Alfred (1979). A religião dos Tupinambás e suas relações com as das demais tribos Tupi-Guaranis. 2a ed. São Paulo, Brasiliana.

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