Uma Introdução à Espiritualidade e ao Pensamento Indígena

Mulher Araweté

Conteúdos
Introdução
Pilares do Pensamento Indígena: Animismo e Perspectivismo
Mundo
Heróis culturais: Os Fundadores do Mundo e da Humanidade
Anhangá e Îurupari: O Causador de Mal e Outros Espíritos
Pinturas Corporais
O Maraká
Queda do Céu
Terra sem Mal
“Espírito” e pós-vida
Conclusão
Bibliografia usada (e indicada)

Introdução
Apesar de minha marcada origem nativa americana (embora mestiça), viajei por longos caminhos, e dentro do próprio pensamento indígena não sou senão um iniciante. Inicialmente tive alguma dificuldade pois estava habituado a um outro mundo de ideias politeístas do qual foi difícil pra mim conseguir o mínimo desprendimento pra compreender as vivências nativas do Brasil não-cabralino. Vou arriscar dizer as coisas sobre meu ponto de vista, e estou muito aberto a todas as críticas construtivas. Não vou tentar fazer nenhuma sistematização dos dados apresentados aqui, que são mais um apanhado de informações iniciais que mostrem o teor das cosmovisões indígenas pra leigos.

Ainda existem centenas de povos indígenas no Brasil e na América como um todo, que vêm resistindo a isso que podemos chamar de a mais longa guerra da História, começada há pelo menos 519 anos. Esses povos podem ser agrupados em alguns troncos linguísticos maiores. No caso do Brasil alguns entre os que ainda são mais expressivos são Tupi (onde se encaixam os igualmente conhecidos Guarani), Macro-Jê e Aruaque, mas existem vários povos em grupos menores ou independentes, como os Yanomami, os Caribe, os Tukano e os Pano, só para fazer breve menção. Mas, diferentemente da Europa, e seus grandes grupos linguísticos celta, germânico, romano, etc., um idioma compartilhado diz muito pouco ou quase nada em muitos casos das práticas cultural-religiosas.

Ou seja, cada povo indígena é um mundo. Uma forma mais feliz de dizer isso, talvez, fosse que “cada povo indígena é uma natureza”. Por exemplo, no Xingu, uma das poucas áreas em que ainda existe alguma preservação (ameaçada por barragens e hidrelétricas além da atividade grileira) dos povos indígenas, vários grupos linguísticos coabitam, mas eles compartilham, entretanto, uma cosmologia e ritos quase idênticos na estrutura principal. Em outros locais, mesmo a vizinhança próxima não era capaz de reduzir as diferenças religioso-culturais. Falar então de uma “espiritualidade indígena” é errôneo, uma vez que existem centenas delas, uma para cada grupo indígena.

Por exemplo: enquanto nas sociedades falantes do tronco linguístico Macro-Jê predominam estruturas sociais bem definidas como grupos de idade, metades cerimoniais, grupos de festa, etc., ou então metades exogâmicas, ou separação clânica, como vemos entre os Xerente e os Xavante, entre os Tupi reina mais propriamente uma sistematização de diferenças que de semelhanças. Nesse sentido aquela “mitologia brasileira” que comumente afirmam “ser dos índios” com algumas “divindades” sistematizadas com funções específicas (Jaci associada à lua, Coaraci ao sol, Tupã ao trovão, Nhanderuvuçu como um criador, etc.) não é mais que uma criação distante das realidades dos diversos povos indígenas e incapaz de responder pela multiplicidade de suas visões “religiosas”.

Note que digo “religião” entre aspas porque eles não entendem seus ritos e crenças como algo separado da vida cotidiana. Cada “religiosidade” indígena está ligada indissoluvelmente à paisagem natural (clima, solo, formações geológicas, fauna e flora), e à sociedade humana que a reproduz e a história dela, e não existe algo como um “grande sistema indígena” de mitos. Isso é assim principalmente por causa antiguidade das culturas indígenas na América, vindas do extremo leste da Ásia e outras áreas do extremo oriente há pelo menos 13.000 anos, o que é quase duas vezes o tempo de vida dos mais antigos proto-indo-europeus que deram origem aos modernos indianos, modernos europeus e outras populações asiáticas atuais e explica a alta diferenciação das populações americanas originais.

Muito do que vai ser dito aqui então reflete mais o lado Tupi(-Guarani) do pensamento (“religioso”) ameríndio, mas vou tentar tanto quanto possível oferecer dados específicos sobre de que povo cada aspecto vem.

Pilares do Pensamento Indígena: Animismo e Perspectivismo
Algumas das ideias principais que pervadem quase todas senão todas essas cosmologias indígenas são essencialmente o que atualmente se chama de animismo e perspectivismo.

O animismo é basicamente a ideia de que os entes naturais como pedras, árvores, animais, rios, etc. também são ou podem ser seres dotados de personalidade, e, portanto, são seres sociais. Pode-se dizer com algumas imprecisões que “tudo tem espírito” ou ao menos os principais seres não-humanos com os quais a comunidade humana interage.

Mas a questão pode ser melhor entendida de outra forma. O antropólogo Viveiros de Castro fala em termos de oposição da teoria do conhecimento da sociedade ocidental e indígena, da seguinte forma: quando um ocidental julga entender, ele entende “algo”, um indígena entende “alguém”. Isso porque a ciência e o modo de conhecer dos ocidentais se embasam na ideia de que quanto mais se conhece algo, mais aquilo evidencia-se através da experiência como sendo um objeto meramente passivo. Um indígena, por outro lado, entende que quanto mais ele observa “algo”, mais esse “algo” mostra seu próprio ponto de vista, sua própria natureza como um sujeito ativo dotado de personalidade.

Não é que o indígena “personifique” nada, pra que chamemos o processo do pensamento indígena de “personificação” temos que supor em primeiro lugar que a natureza essencial das coisas é objetiva, os indígenas então abstrairiam do que percebem e a personificação é nesse sentido um processo secundário, que alguns julgarão correto ou errôneo, e certamente não é disso que se trata. O pensamento indígena não “personifica” algo mais do que o pensamento ocidental “objetifica” o mesmo ser. Ambos os modos de pensar se baseiam em premissas lógicas igualmente válidas, quando analisadas em suas últimas consequências, e em muitos casos, se formos olhar pra efetividade prática, tratar como objetos muitos seres que os indígenas conheciam como sujeitos ou pessoas tem sido um grave problema na manutenção e reprodução do modo de vida da sociedade ocidental dominante: veja-se aí a degradação do solo habitável e das fontes de água potável, essenciais para a vida humana, como apenas dois “singelos” exemplos.

Já perspectivismo é uma ideia mais sutil, interessante e menos difundida, a qual eu mesmo não consegui me habituar senão com muitos meses de estudos e experiências. Eu me arriscaria a dizer que o animismo é compartilhado por quase todas as variedades de politeísmo em maior ou menor grau, mas o perspectivismo é o que o pensamento indígena amazônico tem de mais particular, ao meu conhecimento (aparentemente os povos da Sibéria, parentes distantes dos nossos nativos também compartilham o perspectivismo). Ele pode ser mais facilmente abordado da seguinte forma: enquanto na sociedade ocidental e sua mitologia evolucionista o homem veio da condição de animal, que é então olhado como o estágio primitivo dos seres humanos, o pensamento indígena vê a condição humana como o estado original que os animais abandonaram ou foram forçados a abandonar, por diversos motivos. Enquanto o ocidental reconhece o animal como fundação básica do humano, e que muitas vezes essa animalidade se manifesta, e, em geral, de forma negativa; os indígenas ao contrário reconhecem o humano como fundação básica do animal, e essa humanidade dos animais pode se manifestar em determinadas condições, e isso também geralmente não é bom. Em suma: os animais podem tirar a sua “pele” externa e revelar a humanidade interior deles.

Conseguiu acompanhar até aqui? Tome um ar profundo antes de continuar: Cada espécie vê a si mesma como humana. Essa é a parte mais elaborada e complexa do pensamento indígena, e fundadora de toda a sua noção que podemos chamar de “espiritualidade” e sociedade, e mesmo de estar-no-mundo. Existe uma relação entre os animais que predam (comem) a mim, eu, e o (animal) que eu como. Colocando em termos concretos: existe uma relação existencial e perspectiva entre (a) onça, (b) humanos e (c) animais de caça que são em geral seres herbívoros como porcos do mato, queixadas, cutias, etc. Assim, segundo o pensamento indígena, o ser que nós vemos como onça vê a si mesmo como humano e a nós humanos como animal de caça; os animais de caça por sua parte se veem a si próprios como humanos e a nós como onças. Isso se baseia numa ideia muito lógica desenvolvida empiricamente a partir da cadeia alimentar. Como Viveiros de Castro diz, todo animal é humano com seus próprios semelhantes, com os seres da própria espécie.

Essas duas ideias, animismo e perspectivismo, fundam o xamanismo no modo de pensar indígena: a natureza é rodeada de consciências e o paîé (termo tupi antigo pra “pajé, xamã”) é aquele (in)divíduo que é capaz de vestir a aparência dos animais, ao menos nos olhos humanos, e atingir a humanidade desses animais, e conversar com eles como humanos. Isso leva a ideias bastante pitorescas e ainda assim muito inteligentes, como o multinaturalismo, nos termos castrianos. Se cada ser se vê a si mesmo como humano então não temos uma natureza e várias culturas nos separando, como diz os homens ocidentais, mas a cultura é única, e o humano é a forma dessa cultura, e assim temos várias naturezas. A minha natureza da perspectiva da cotia é de que eu sou uma onça, e da onça, de que eu sou uma cotia. Da mesma forma a cotia pras pobres plantas que se veem como humanas não passaria de uma onça.

De pensamentos como esse surgem a fundação pra ideias interessantes da espiritualidade indígena como o parentesco com a natureza; a Terra e/ou a Água (geralmente sendo um rio específico como Myrená, entre os Kamayurá, da família Tupi-Guarani) são vistas como mães, e diversas espécies de árvores (em especial o pau-brasil, com sua “alma vermelha”), animais, montanhas e mesmo o céu são vistos como parentes, a partir da relação de ajuda mútua que desenvolvem com os indígenas, entre outros motivos.

Em decorrência disso, os animais aparecem profundamente envolvidos com os humanos nas histórias indígenas, com onças, tatus, caititus, pássaros, entre outros animais, mas também plantas como milho, mandioca, etc. participando ativamente na vida da comunidade humana, com personalidades e vozes próprias, o que, comparado com os povos europeus mais conhecidos em suas práticas pré-cristãs, em geral é a função tanto de semi-deuses quanto de deuses. Tome-se por exemplo Tamï howï 'hã, o gavião-carrapateiro celeste Araweté (da família Tupi-Guarani), que vive do outro lado da terra dos deuses e causa as chuvas, ou o Iriwo moroãï tã, o Senhor dos Urubus que vive no céu imediato (os Araweté diferenciam dois céus) e recebe ali as almas dos mortos.
Homem Urubu-Kaapor


Mundo Quando falamos de “mundo” entre os indígenas em geral é possível apreender (ao menos olhando de fora) dois tipos distintos: o mundo material e o humano. Embora ambos se fundam em muitos pontos, o mundo humano se sobrepõe ao mundo tal qual os ocidentais o entendem. O mundo é constantemente refundado com suas criaturas, e seus movimentos são recriados nas danças, e suas narrativas retransmitidas nas formas de cantos e histórias, como diz o grande líder indígena Ailton Krenak (os Krenak são descendentes de Botocudos, falantes de língua do tronco Macro-Jê), pois não existiu uma única criação do mundo, que acabou, o mundo é recriado por tais atos e renovado a todo o instante. Quando se fala da Queda do Céu, por exemplo, fica nítido no mito Krahô (Macro-Jê) que se trata principalmente da destruição de um cosmos Krahô, uma realidade compartilhada que sofre riscos de diversos tipos para se manter.

O mundo em geral (ao menos entre os Tupi-Guarani) era visto como possuindo três tipos de camadas: celeste(s), terrestre(s) e o(s) submundos. Entre os Kaapor (pertencente à família Tupi-Guarani), por exemplo existem três camadas: o mundo celeste habitado pelas almas dos mortos e ligado ao fundador Mair, o mundo terrestre humano, e o mundo inferior, associado aos espectros dos corpos decompostos, onças e à feminilidade.

Os Yanomami enxergam o mundo como um ser vivo, Hutukara, a Terra-Floresta, do qual nós vivemos na pele da barriga, e que precisa ser constantemente cuidada e protegida pelos humanos.
Entre os Krahô (pertencente ao tronco Macro-Jê) o mundo também é dividido em três partes, e enquanto as duas primeiras (terra e céu) são razoavelmente semelhantes ao modelo geral, a parte subterrânea é o Króukhoti, o “Grande Buritizal”.

Já os Wayãpi e Araweté (ambos da família Tupi-Guarani) reconhecem o mundo com dois céus em que no inferior um urubu sobrenatural vive; (no caso Araweté o já mencionado Iriwo moroãï tã) para os Araweté o céu que vemos é só o avesso do céu em que vivem os espíritos superiores e almas. Para os Parintintin, também existem dois céus, mas o segundo é o mais importante, onde vive o “Povo Celeste” que ergueu a habitação deles, se separando dos humanos. Aliás esse tema do céu se separando da terra também é visto entre os Araweté, para quem os montes e rochas são sinais dessa separação, quando os espíritos superiores (algumas vezes chamados de deuses pelos ocidentais) fizeram o céu subir no começo dos tempos. Entre os Kaapor também o céu é dito certa vez ter tocado a terra, o qual foi necessário se cortar para separar ambos.
Ailton, Liderança Indígena do povo Krenak


Heróis culturais: Os Fundadores do Mundo e da Humanidade
Outra ideia bastante comum se não universal no pensamento indígena é a dos chamados heróis culturais ou heróis “civilizadores” ou ainda simplesmente “fundadores”, que também se equipara à noção de divindades entre outros povos.

O Fundador é assim comumente uma figura que forma tanto o mundo quanto os humanos, e geralmente também está envolvido na transformação de humanos nos primeiros animais. Ele pode ser identificado com diversos tipos de “arquétipos”, alguns solares (como Pyt, o sol entre os Krahô (Jê) e Maíra-poxy entre os Tupinambá (Tupi) antigos, ou mesmo o Ñanderuvuçu que no mito Apapokuva (Tupi-Guarani) carrega o sol em seu peito), outros não, e é pensado em geral como um “avô” da humanidade, ou ao menos de um povo específico. Mas não menos importante é a dita capacidade de transformação de outros seres que esse “artista” (que é uma das formas dos Yanomami chamarem seu criador Omama) tem.

Esses fundadores, apesar disso, possuem diversos nomes, os quais quase nunca são cognatos (diferente dos indo-europeus, por exemplo, com cognatos de Dyḗus Ptḗr e outros deuses em quase todos os idiomas atestados: Zeus, Týr, Jupiter, Dyaus Ptar, etc.), como Kurasaybu entre os Munduruku, Monã entre os antigos Tupinambá, Ñanderuvuçu entre os Guarani, Yñerre entre os Maína, só pra ficar entre etnias que são mais razoavelmente aparentadas linguisticamente e poderíamos esperar alguma espécie de similaridade no nome do Fundador. Exceções são: o Mair Kaapor, o Maíra Tenetehara, o Maíra (Maire) entre os Tupinambá e os espíritos superiores Maï Araweté. Importante ressaltar também que esse Fundador não é necessariamente objeto de algum culto, entre os Tupi da costa na época da chegada dos invasores portugueses ele certamente não era.

Entre os povos do tronco Tupi, em geral, mas não em absoluto, esse fundador possui filhos gêmeos de uma mãe humana, ou ainda é pai de um dos gêmeos, e o segundo deles é filho de um seu ajudante (entre os Apapokuva-Guarani) ou ainda outro ser, como mesmo um rato (entre os indígenas da Aldeia de Santa Rosa). Esses gêmeos entram em diversas peripécias e em alguns povos estão associados à aquisição da tecnologia usada pelos indígenas.

Um tema também fortemente presente no pensamento de vários povos e associado ao Fundador é o de um incêndio e/ou dilúvio universal, os quais deram formato à Terra tal qual conhecemos hoje, e é encontrado em todos os povos Tupi-Guarani que conheço, e em outros povos também.
Joênia Wapichana, primeira deputada federal indígena do Brasil


Anhangá e Îurupari: O Causador de Mal e Outros Espíritos
Mas o mundo dos indígenas não é idílico como em Iracema, espíritos ruins existem e são parte natural do pensar nativo da América, entendendo aqui por “ruim” algo ou alguém que causa mal à comunidade em questão e não um mal platônico-cristão como valor moral absoluto.

Em geral nas sociedades Tupi o nome atribuído a esse ser é Anhangá ou Îurupari/Jurupari, dos quais o último pode ainda se referir a uma classe de espíritos em vez de ser um nome próprio. Esses espíritos parecem habitar próximos de túmulos, podendo ser associados a comedores de cadáveres podres, ou ainda seres malignos que vivem na escuridão e atacam humanos. São também seres causadores de doenças e que podem afastar as chuvas, sendo comumente associados ao Diabo da mitologia cristã.

Como as fronteiras da humanidade cessam no grupo, geralmente cada povo indígena considera somente a si mesmo como humanos ou ao menos os humanos verdadeiros (isso não é algo exclusivo dos indígenas, basta dar uma olhada nas teologias judaica e cristã). Com isso os invasores brancos, entre os Yanomami, por exemplo, foram inicialmente vistos como fantasmas que vinham com o propósito absurdo de voltar a viver no mundo dos vivos, e embora tenham sido admitidos na cosmologia Yanomami como humanos de segunda categoria, ainda são napë pë, que é o termo deles pra designar “inimigos” e “espíritos ruins”, graças à influência predatória, o crime, as doenças e arrogância espalhados pela civilização branca entre eles após o contato. Os napë pë se opõem aos xapiri, os espíritos protetores das florestas, invocados pelos xamãs Yanomami pra manter a saúde da comunidade humana e da Hutukara, a terra-floresta, o ser que abriga a humanidade, e do qual somos apenas parte.


Além desses espíritos malignos existem também as Mães da Caça entre os Munduruku (do tronco Tupi), por exemplo, que são protetores de espécies animais, as quais se mortas ou desrespeitadas causam a falta das espécies que naturalmente servem de alimento à aldeia. São uma contraparte importante do Kaapora Tupi-Guarani, que é mais conhecida no “folclore nacional” como guardiã da mata contra invasores e caçadores nocivos.
Criança Yanomami


Pinturas Corporais
As pinturas corporais indígenas são um dos aspectos bastante vandalizados na visão do ocidental vulgar. Nas sociedades ameríndias tudo possui significado, e a sociedade branca, por outro lado, é uma sociedade da estética, onde o significado quase inexiste, fora da linguagem escrita e falada (ou ainda transmite sinais que são bastante subjetivos e quase nunca representam valores exatamente coletivos).

As pinturas corporais indígenas são uma forma de escrita simbólica que visa constituir e transmitir diversas mensagens. Elas podem indicar pertencimento a determinado grupo de clãs dentro de um povo, condição de relacionamento, quantidade de filhos, faixa etária, indicar temas cosmológicos, etc.

Cada grupo possui seu conjunto de símbolos que são muitas vezes permitidos apenas a iniciados em determinados rituais de passagem. Eles não são mera tinta na pele sem sentido, e é por isso que a tal “fantasia de índio” causa tanta indignação nos indígenas. Não são como as pinturas sem significado usadas por gente branca em bebedeiras como o carnaval; ao contrário, elas expressam o verdadeiro ser de uma pessoa pertencente a um povo indígena, seus humores e pensamentos, e sua importância dentro do grupo.
Maraká

O Maraká
Maraká, do tupi antigo mbará, “barulho”, e , “casca”, “invólucro”, é o instrumento sagrado par excellence ao menos na América do Sul (talvez salvo à exceção dos Andes, novamente).

Ele é comum a todos os povos que conheço no Brasil e em outros países vizinhos, e possui diversos significados, embora na maior parte dos povos ele não é visto como apenas um instrumento musical, mas encerra significados muito mais profundos. Ele é feito de uma cabaça natural, da qual o miolo é retirado por dois furos no centro, por onde se coloca uma haste madeira o atravessando; então ali são colocadas pedrinhas, feijões ou milho dentro e ele é decorado com penas, pinturas e/ou entalhes, se tornando uma espécie de chocalho.

Entre os Pumé da Venezuela, por exemplo, acredita-se que as pedrinhas do chĩ (como os Pumé chamam o maraká) são as almas dos tío, que entram e podem deixar o chĩ por espontânea vontade, não são colocados ou retirados. Esses tío são crianças que morreram antes de nascer, e que por isso assumiram uma posição intermediária entre os seres humanos e os deuses, a quem intercedem pelos humanos. Os chĩ são tão sagrados que não ficam à luz do sol pra não incomodar os tío, e são o instrumento pelo qual os tío falam aos humanos durante as danças de Tõhé dos povos Pumé. A venda de um chĩ causava enorme desgraça e mesmo a morte, sendo considerado como um desrespeito aos tío.

A importância dos maraká no Brasil pré-cabralino é atestada pelos cronistas europeus. Jean de Léry, diz que os karaíba (profetas indígenas) portavam eles, um em cada mão. Léry ainda diz que os karaíba e paîé fincavam os maraká no chão após confeccionar e pediam que as pessoas da aldeia deixassem ali aos pés dele comida e bebida, que os espíritos armazenados no maraká consomem durante a noite, e assim eles permaneciam por quinze dias a três semanas recebendo tais ofertas.

Entre povos ainda vivos como os Krikati e os Bororo (do tronco Macro-Jê) o maraká é feito nos mitos pelos deuses ou espíritos superiores, e precisam ser buscados por um humano muito corajoso, porque em ambos os casos os donos do maraká caçariam quem o roubou, caso dessem falta ou o objeto chiasse antes de estar a salvo. Assim, ou através de um cuidado absurdo, ou da ajuda de pássaros como o colibri, o maraká conseguia ser trazido pra comunidade humana. Entre os Tenetehara (da família Tupi-Guarani) o tema é similar, mas representa o rito de passagem dos meninos, através de Wira'í, que enfrentou uma longa jornada pra retornar pra casa e comemorou transformando-se em um passarinho, cantando e tocando seu maraká, quando enfim chega, após a ajuda dos animais da mata.

Assim o maraká é por excelência uma forma de comunicação com o mundo divino ou dos mortos, um instrumento sagrado e muito importante entre os indígenas, e todo o seu simbolismo e uso, tanto por homens que atingem a fase adulta e/ou por paîé e karaíba indicam o respeito com que ele era e é visto nas culturas indígenas.
Menina Kayapó



Queda do Céu
O tema da Queda do Céu aparece algumas vezes entre os indígenas brasileiros de povos razoavelmente distintos: por exemplo, os Araweté (que são Tupi-Guarani), os Krahô (Macro-Jê) e os Yanomami.

Entre os Araweté tal evento é associado às almas dos mortos: os deuses e almas que foram pro céu farão com seu próprio peso que ele caia sobre a terra, extinguindo os vivos e se tornando a nova habitação de deuses e mortos (e os Araweté têm um grande tabu quanto a falar e mesmo a pensar no assunto).

Entre os Krahô a Queda do Céu acontecerá quando as seis árvores-pilar que sustentam o céu forem consumidas pelos pica-paus. Existe um pra cada árvore, que só conseguem com a própria força bicar as árvores até a metade e então precisam beber água; após voltarem ela já está recomposta novamente. Eles novamente se esforçam até serem atacados pela fome, e quando voltam, novamente a árvore se encontra regenerada. O pica-pau não devora a árvore totalmente, ele pra em um momento e descansa, assim como os trabalhadores e a própria terra precisam descansar, e assim o ciclo consegue ser mantido. Uma superexploração da árvore por parte do pica-pau derruba os céus sobre a cabeça dos Krahô.

Entre os Yanomami a narrativa da Queda do Céu está associada a uma forma não muito diferente: a floresta é um ser vivo de vida indeterminada. Mas os napë pë (brancos, espíritos inimigos, invasores) são capazes de destruí-la, como consequência secando rios, murchando árvores, e rachando pedras de tanto calor. Os xapiri (espíritos protetores da floresta) não vão ser assim capazes de descer das montanhas e proteger a terra, e assim os xamãs não vão poder curar mais, e será a morte de todos, tanto dos Yanomami quanto dos napë pë.
Sônia Guajajara

Terra sem Mal
A Terra sem Mal é um tema recorrente nas sociedades Tupi-Guarani e existiu tão antigamente quanto o contato com os primeiros cronistas europeus do século XVI com os Tupi da costa e persistiu ainda pelo século XX entre os Apapokuva-Guarani registrados por Curt Nimuendaju (na atualidade parece-me permanecer, com algumas mudanças, entre os Araweté e os Urubu-Kaapor, pelo menos).

Entre os povos da família Tupi-Guarani existia a crença de que no princípio houve uma terra original (ou melhor, um estado original da terra) onde ferramentas agrárias trabalhavam sozinhas, animais eram mansos pra caça, ou então não existia em absoluto necessidade de trabalho e comida; mas por alguma querela com o Fundador, os humanos são então expulsos dessa terra, e passam a vagar no atual mundo, após enchentes e incêndios que o desconfiguram totalmente.

Considerando a rota de expansão dos Tupi-Guarani, seja qual for dos modelos propostos, eles teriam caminhado praticamente toda a atual América do Sul, e isso parece estar bastante relacionado com sua forma de pensar, pois eles saíram procurando a Terra sem Mal, que não era um Éden, no sentido cristão, ou um paraíso celeste pra depois da morte. A Terra sem Mal não era um objetivo ou etapa da vida (ou da morte) a se alcançar no tempo, era uma destinação no espaço, era um local.

Essa Terra sem Mal onde todas as coisas são boas, onde o trabalho é ameno e a fartura reina, é o que foi procurado em vida pelos ancestrais dos povos Tupi-Guarani. Mas não havia nenhum consenso entre os povos onde ela pudesse estar: alguns diziam que ela estava totalmente afastada do mar, outros que ela estava além dos mares do leste, outros a oeste. Os Apapokuva (Guarani) identificaram ela também no topo do céu visível, e por isso deviam atingir a Terra sem Mal através da leveza, com a dança exaustiva.
Cena de antropofagia ritual Tupinambá


“Espírito” e pós-vida
“Espírito” e “alma” são palavras complexas porque às vezes elas pegam parte do que os nativos entendem, e às vezes não. Um espírito não necessariamente é algo imaterial, humanos podem ser espíritos, e não necessariamente ‘um’ ‘espírito’ ‘individual’ habita em cada ser humano. Por exemplo, é recorrente a noção de um ‘espírito do olho’, que é visto através do reflexo do olhar; mas os Yekuana além deste reconhecem outros quatro: um ‘espírito do coração’, ‘espírito na lua’ (um receptáculo de pensamentos e ações ruins), o ‘espírito na água’ (reflexo na água), e o ‘espírito na terra’ (isto é, a sombra). Espírito não equivale essencialmente a personalidade ou individualidade.

O sistema Tupi-Guarani de espírito parece ter entendido pelo menos duas partes distintas da alma/espírito: uma que vai para o céu, outra que vai para a terra. Entre os Tapirapé (que são Tupi-Guarani também), entretanto, o eixo leste-oeste parece tomar essa função num grupo de oposições: (a) floresta, comuns, mortos, homens e oeste versus (b) aldeia, xamãs, vivos, deuses e leste. O lado a encerraria um determinado tipo de almas (comuns) num local, o lado b, outro tipo em outro local.

Os Araweté ainda tinham um sistema complexo e interessante: o canibalismo divino. A alma recém-chegada seria devorada pelos deuses celestes que a partir dos ossos tornariam seu jantar em um novo deus. Os Guarani por sua parte identificam sete ou mais paraísos. Entre os Tupinambá o Gauîupiá seria o domínio da alma valorosa, nos céus.

Entre os Tupinambá e outros povos Tupi-Guarani uma parte ou ‘sombra’ da alma comumente é vista como habitando as proximidades da aldeia após a morte, podendo causar prejuízos à comunidade humana.

Conclusão
Evitei fazer citações acadêmicas precisas pois a maior parte desse texto saiu assim, de coração mesmo, tirando da memória, e tentei deixar ele menos cansativo para os olhos do leitor não-acadêmico. Meus perdões a todos que passei as ideias adiante sem citar, mas todos os que pude me lembrar estão na bibliografia abaixo. Com um bom google.com o leitor interessado vai encontrar todas as obras listadas em versões gratuitas.

Esse texto certamente deixou de tocar aspectos importantes como canto e dança, uma exposição mais profunda do xamanismo indígena, uso de plantas como auxiliares em contatos com espíritos, etc. Evitei por serem temas longos e delicados, que mereciam mais que uma simples menção num texto que não deveria ficar (tão) longo.

A sobrevivência das culturas indígenas na atualidade está bastante arriscada por causa da pressão dos mercados internacionais que demandam matérias primas, construção de barragens, etc. em suas terras. Por isso, a espiritualidade indígena é mais que um culto good vibes, não é possível se separar as ideias que os indígenas defendem cosmologicamente e o que eles sofrem historicamente em consequência disso.

A espiritualidade indígena é assim uma afinidade, uma afiliação quase (ou literalmente) parental com os povos originários dessa terra, e os indígenas já são muito roubados historicamente para simplesmente terem suas crenças pegas por terceiros sem nenhum cuidado com esses indígenas. Ajude-os como puder, se você se interessa pelas ideias e espiritualidade deles, e não seja só mais um colonizador se apropriando daquilo que eles preservam a custo de tanto sangue por mais de cinco séculos.

Bibliografia usada (e indicada)
1499: O Brasil antes de Cabral. Reinaldo José Lopes.
A religião dos Tupinambás. Alfred Métraux.
Antes o mundo não existia. Ailton Krenak.
A queda do céu: Palavras de um xamã Yanomami. Davi Kopenawa e Bruce Albert.
O cosmo segundo os Yanomami: Hutukara e Urihi. Ana Maria R. Gomes e Davi Kopenawa.
A inconstância da alma selvagem. Eduardo Batalha Viveiros de Castro.
Araweté: os deuses canibais. Eduardo Batalha Viveiros de Castro.
Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena. Eduardo Batalha Viveiros de Castro.
Vingança e Temporalidade: Os Tupinambás. Manuela L. Carneiro da Cunha e Eduardo Batalha Viveiros de Castro.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Mitos Indígenas Inéditos na Obra de Curt Nimuendaju. Nº 21, 1986.
Lendas da criação e da destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocuva-Guarani. Curt Nimuendaju Unkel.
A vida dos maracás: reflexões em torno de um instrumento ritual entre os Pumé da Venezuela. Gemma Orobitg Canal.
A voz dos espíritos: uma abordagem sobre o maracá em sociedades indígenas do Maranhão. Claudio Zannoni e Maria Mirtes dos Santos Barros.
Grafismo indígena e estudos de antropologia estética. Lux Vidal (org.).
Levantamento Etnoecológico Munduruku: Terra Indígena Munduruku. FUNAI/PPTAL/GTZ.
As religiões indígenas: o caso Tupi-Guarani. Roque de Barros Laraia.
Sustentando o Cerrado na Respiração do Maracá: conversas com os Mestres Krahô. Veronica Aldè.
Red Gold: the conquest of Brazilian Indians. John Hemming.
Ojibwa Ontology, Behavior and World View. Alfred Irving Hallowell.
Mundurucú Religion. Robert F. Murphy.
Animism and Invisible Worlds: The Place of Non-humans in Indigenous Ontologies. Marc Brightman, Vanessa Elisa Grotti and Olga Ulturgasheva.
“Animism” Revisited: Personhood, Environment, and Relational Epistemology. Nurit Bird‐David.
Animism, shamanism and discarnate perspectives. Alex Gearin.

Um comentário:

  1. Poxa, que texto incrível. Estou estudando culturas indígenas brasileiras, estudando tupi antigo e toda a cosmogonia indígenas. Achei seu texto tão incrível, de verdade. Apesar de se um não indígena, como todo brasileiro resido de uma história marcada por uns avós capturados no laço e outros advindos da escravidão. Queria poder encontrar mais afundo sobre minhas raízes, mas é quase impossível, então ler e estudar sobre isso me dá um caminho pra conhecer melhor todas as histórias que conta minha avó, muitas surpreendentemente parecidas como se tivessem vindas direto da mitologia indígena, e provavelmente vieram. Muito obrigado, de verdade. Amei seu texto.

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