O Eterno Presente Tupi

Araweté

Quando eu paro para me questionar até que ponto a Europa e o cristianismo forjam a cada segundo quem sou psicologicamente, raramente consigo ter uma ideia razoavelmente profunda, ainda. Todavia, em meus últimos tempos, tenho me esforçado a compreender aspectos básicos da língua tupi antiga, que foi compartilhada pelos meus ancestrais Ka'aeté, bem como o que é possível entender de seu pensamento, aproximadamente, usando, digamos, a etnografia dos Tupi do Rio de Janeiro, ou Tupinambás, se assim preferir. O que se segue são reflexões que visam, mais que por uma pedra no assunto, suscitar o debate e provocar os mais sábios a corrigir onde meu pensamento se provar falho.

Através do método reconstrucionista, o relato do frade André Thevet é algo realmente interessante nesse processo, uma vez que aqui sigo tanto Fausto (1992: 383) quanto Cunha e Viveiros de Castro (1985: 57) e Métraux (1979: XXXIII) que consideram que todos os grupos Tupi costeiros podem ser entendidos como um continuum o qual pode ser agrupado sob o título "Tupinambá". Por falta de evidências específicas dos Ka'aeté de minha região, que fazem parte desses Tupinambá, tomo como ponto de partida a obra de Thevet.

Em sua Cosmografia Universal (1575), o francês deixa escapar alguns detalhes importantes. Por exemplo:
La premiere cognoissance donc que ces Sauuages ont de ce qui surpasse la terre, & d'un qu'ils apellt Monan, auquel ils attribuent les mesmes perfections que nous faisons à Dieu, le disans estre sans fin & commencement, estans de tout temps, & lequel a creé le Ciel, la terre & les oyseaux & animaux qui sont en eux ... (pg. 914a)
[O primeiro conhecimento do qual estes selvagens têm do que passa na terra, e de um que eles chamam Monã, ao qual eles atribuem as mesmas perfeições que nós damos a Deus, dizendo que ele é sem fim e sem começo, existindo todo o tempo, e o qual criou o Céu, a Terra e os pássaros e animais que estão neles...][1]
Ao primeiro olhar esse fragmento deixa a impressão inegável que o frade quinhentista não fez muito mais que gravar apenas aquilo que do fundador cultural lhe fosse similar ao seu próprio deus — e aquilo que ao mesmo tempo conferia a esse deus sua potência —, o que não está necessariamente errado. Thevet enxergou as similaridades, todavia, muito mais profundamente do que elas realmente existiam.

O mais importante é aqui: Monã não possui fim nem começo, e está em todo o tempo. Mas isso acontece de uma forma diametralmente oposta ao deus do credo europeu: para o cristianismo, seu deus é sem começo e sem fim pois ele antecede a tudo e permanece após tudo. Ele está em todo o tempo pois o tempo se encontra dentro de sua existência, não existindo antes nem mesmo depois do deus cristão. Ou ao menos é assim que o cristianismo enquanto crença popular apresenta as coisas.

Monã, todavia, não tem fim nem começo não porque seja anterior ao tempo e posterior a ele, mas simplesmente porque, em certa medida, o tempo, como ocidentais o concebem, é impossível dentro da mentalidade Tupinambá. Se aqui seguirmos Cunha e Viveiros de Castro (1985: 75), concebendo a perpetuação de uma vingança com caráter existencial Tupi-Guarani, percebemos que, diferente de, digamos, o passado europeu pré-cristão, os Tupinambá não buscavam entender como o mundo veio a ser e nem se davam muito a esse tipo de questionamento. A vingança seria o motor da existência: não um encadeamento de fatos que culmina na ascendência do humano por sobre o resto da criação (inclusive o restante da criação é vista em termos de abandono da humanidade, uma humanidade diminuída, queimada e afogada por Monã). A vingança Tupi é impessoal, não contra indivíduo x ou y que pode ser saciada, mas uma vingança inesgotável.

Isso porque não existe um começo ou fim propriamente dito na mentalidade Tupinambá. Isso trairia a própria forma de pensar do Tupinambá e do Tupi antigo em geral, uma vez que não existem tempos verbais em seu idioma (Navarro 2005: 24): anhe'eng, por exemplo, significa tanto "eu falei" quanto "eu falo". Essa dificuldade técnica é posta ao europeu quando Thevet diz que Monã 'a crée', isto é, criou, usando o verbo criar no passado.

E o que isso afinal significa? Para o europeu o seu mito reflete uma fundação imemorial, um tempo mítico, que requer uma estrutura que confirme a permanência da ação. Se mito e realidade não se separam no pensar pré-científico de europeus e indígenas de Abya Yala, todavia, a forma pelo qual eles se perpetuam é bastante diferente. Peguemos como exemplo as narrativas nórdico-europeias: Sol (Sunna) e Lua (Máni) são criados em um momento, e a razão pela qual eles se mantém girando ao redor do céu está instituída em outro que não só é posterior como contínuo, uma vez que estes astros personificados possuem dois lobos correndo atrás de si, razão pela qual um dia após o outro, Sunna e Máni precisam correr deles, até que serão enfim devorados e o tempo terminará (Sturluson, 1916: 22-23). Pode-se com muita razão também se questionar a influência cristã aqui, mas, a rigor, isso é propósito de escandinavistas; aqui esse continuum pagão-cristão europeu interessa em si mesmo.

Mais adiante, na Cosmografia thevetiana, o frade nos narra como Erĩmaîé, agora renomeado Maíra-Monã, após irritar a comunidade humana por transformar diversos humanos em outros seres, é desafiado a pular por três fogueiras para provar-se um grand Caraibe souuerain [grande Karaíba soberano] (Thevet, 1575: 914b), talvez Karaíbusueté em língua Tupi, e ao falhar ao tentar pular a segunda destas fogueiras, o francês diz que sua cabeça explode e o som atinge ao Céu e a Tupã:
... & de là disent, que s'engendrerent les tonnerres dés le commencement, & que l'esclair qui precede l'esclat du tonerre, n'est que la signification du feu, par lequel ce Maire fut consommé. (Thevet, 1575: 915a)
[... e de lá dizem que surgem os trovões desde o começo, e que o clarão que precede o barulho do trovão não significa mais que fogo, pelo qual este Maíra foi consumido.]
Ou seja, se o mito fundacional dos eventos naturais europeu tem um começo e um fim bem claros, o commencement [começo] do mito de Tupinambá como contado por Thevet é, neste caso, questionável. Enquanto para uma sociedade lobos correndo atrás de sua Sol são razão do movimento solar e a pancada do martelo de seu deus são a causa dos trovões, isto é, atos potencializados, porém repetíveis, capazes de serem consecutivos, dentro de uma linguagem que divide tempos verbais ao menos em passado e presente, para nativos americanos nós temos, ao contrário, um mito atemporal, uma morte que em vez de se repetir a todo trovejar, estabelece a unicidade do trovão: se o pensar europeu estabelece um princípio e um continuum temporal linear que afeta o agora, para os Tupinambás ou não se tem tempo nenhum ou se tem apenas o agora. Se o mito habitual ao europeu começou em um ponto (no passado) e está sendo (presente), o mito Tupinambá apenas é (como uma ação unificada e quase abstrata). Em uma palavra: se Deus fez o mundo, Munhã faz o mundo (e está sempre fazendo, nunca termina).

Reforçando essa visão, em sua obra (1979: 6) Métraux reconta o mito registrado por Nimuendaju e colhido entre os Xipaia onde o Sol, com sua tradicional coroa de penas vermelhas e flamejantes de arara, é morto após ser acertado na cabeça com frutas de anajá, dando assim origem à noite. Mais uma vez um ato fundacional único embasa a repetição e unicidade de um evento natural. [2]

Isso entra em total conformidade com o proposto por Cunha e Viveiros de Castro (1985: 75), onde o mito não cria uma sequência, mas fala do agora. Isso pode ser ecoado mesmo por indígenas do sul de Abya Yala (Américas) fora do tronco Tupi, como os Krenak (pertencentes ao grupo Macro-Jê) atuais, que desenvolvem o tema com muito mais vivacidade do que eu seria capaz:
... sonho de verdade é quando você sente, comunica, recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida e o sentido do caminho do homem no mundo é contado pra você. Você toma, aprende como se estivesse dentro de um rio. Este rio, você fica olhando ele, depois você volta, aí você olha. Não é o mesmo rio que você está vendo, mas é o mesmo. Porque se você fica olhando o rio, a alma dele está correndo, passando, passando... mas o rio está ali. Então ele é sempre, ele não foi, é sempre. Não existiu uma criação do mundo e acabou! Todo instante, todo momento, o tempo todo é a criação do mundo. Por isso que no sonho a gente entra dentro dele, aprende, alimenta o espírito (Ailton Krenak, 1992: 3; grifos meus).
Posso dizer assim que enquanto o pensamento europeu requer um passado que pode ser mítico ou não, mas que tende a assumir um status quasi­-mítico mesmo com seus argumentos científicos (vide a maneira que a sociedade ocidental tem usado a teoria da evolução desde o séc. XIX, isto é, como justificativa pra seu pensamento predatório e ataque de outros povos baseado num dogma eurocêntrico que põe os brancos como seres superiores graças ao seu nível de tecnologia), que é uma justificativa de presente. Com o advento do cristianismo e expansão do pensar civilizado, insere-se aí o futuro como categoria de desejo, como razão para a qual passado e presente apontam, e que mesmo justifica o não-presente, a fuga do ocidental moderno. O pensamento Tupinambá (talvez mesmo o indígena (sul-)americano, mas vou evitar tal generalização) aponta, por sua vez, para a indivisibilidade da dimensão temporal, o que equivale em certa medida à sua inexistência. Se a eternidade cristã cirscuncreve-se dentro de um ponto inicial e final que são infinitos, a eternidade Tupinambá o faz totalmente alheia ao tempo em si:
... não se espera o advento da Terra sem Mal sob a forma, para nós familiar, do “milênio” como um evento a ser esperado no tempo, tempo que é, nestas sociedades, seu modo normal de produção; é preciso procurar a Terra sem Mal no espaço, talvez a leste, talvez a oeste, e Tupis e Guaranis, perambulam à sua procura (Cunha e Viveiros de Castro, 1985: 72).
Importantíssimo notar na paisagem acima que a Terra sem Mal Tupi(-Guarani) é um quasi-mundo ideal platônico: ali não existe trabalho na roça, machados, enxadas, e outras ferramentas agrícolas trabalham sozinhas; não existe dor e morte e a perenidade perpassa todas as coisas. Porém, como ressaltado na citação de Cunha e Viveiros de Castro acima, ela não é procurada no tempo, num outro mundo, não é uma recompensa mas um lugar a se encontrar, ela existe aqui na mentalidade Tupi-Guarani.

Assim, talvez possamos reformular o dito dos nossos parentes do grupo Tupi, os Araweté, que dizem que só os ossos esquecem (Viveiros de Castro, 1986: 9), dizendo, por outro lado, que só os ossos guardam memórias, uma vez que numa natureza onde o tempo é inexistente, também a memória como o ocidente a conhece é inútil. Apenas o agora, o espírito do rio correndo, e não o rio que já foi, existe.

NOTAS: 

[1] Perdoem qualquer erro de tradução do francês de Thevet. Minha habilidade com francês escrito não é mais que mediana (conversação é quase nula) e o de Thevet, por ser tão arcaico, é um desafio para um autodidata  sem nem um dicionário daquela variedade da língua francesa.
[2] Olhando em outra direção, mitos desse tipo podem ser explicações analógicas: "da mesma forma que o sol foi morto com anajá um dia e escureceu, hoje, a uma certa hora, a noite vai chegar". Assim teríamos o princípio do similar explica o similar por sua semelhança (ou por causa dela ele o afeta).

REFERÊNCIAS:

CUNHA, Manuela L. Carneiro da; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. (1985). Vingança e temporalidade: O Tupinambás.
FAUSTO, Carlos (1992). Fragmentos de história e cultura Tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela L. Carneiro da (org.). História dos Índios no Brasil. Companhia das Letras, 2ª ed.
KRENAK, Ailton (1992). Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras.
MÉTRAUX, Alfred (1979). A religião dos Tupinambás e suas relações com as das demais tribos Tupi-Guaranis. 2a ed. São Paulo, Brasiliana.
NAVARRO, Eduardo Almeida de (2005). Método moderno de Tupi Antigo: A língua do Brasil dos primeiros séculos. 3a ed. São Paulo, Global.
STURLUSON, Snorri (1916). The Prose Edda. Trad. Arthur Gilchrist Brodeur. New York, Oxford University Press.
THEVET, André (1575). La cosmographie universelle d'André Thevet cosmographe du roy, Ilustrée de diverses figures des choses plus remarquables vevës par l'Auteur, et incogneuës de noz Anciens et Modernes. Tomo II. Paris.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. (1986). Os deuses canibais: A morte e o destino da alma entre os Araweté.

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