"O Eterno Começo do Mundo" e outros mitos Tupinambá na Cosmografia de Thevet

Observação inicial: Foram usadas versões corrigidas (que em alguns casos são apenas palpites educados) dos nomes em tupi antigo fornecidos por Thevet. O próprio autor confessa em sua obra que seu conhecimento do idioma indígena é fraco; em alguns casos os nomes que ele oferece em língua nativa não fazem o menor sentido. Em outros, a grafia francesa simplesmente dificulta uma leitura fonética correta ao leitor não versado naquele idioma. Por fim, existem diversos erros e variantes tipográficas que são um labirinto para o leigo (especialmente nos muitos casos em que "u" ou "v" são substituídos por ou substituem "n"). Por todos esses motivos, manter as formas de Thevet seria totalmente contraprodutivo. Todavia, as grafias originais da Cosmographie são adicionadas entre colchetes após a primeira menção do nome das personagens no texto. As correções são sobretudo encontradas nas notas de Estevão Pinto na obra de Métraux (1979) e o dicionário de Carvalho (1987).

Thevet não menciona a origem dos três elementos-chave do cosmos Tupinambá: (1) Monã [Monan], (2) o mundo e (3) a humanidade. O relato como ele nos conta parece-nos ser um esforço deliberado dos Tupinambá para limitar a origem do mundo à origem dos Tupinambá como uma entidade étnica. No começo, Monã viveu na terra entre os humanos, e nós poderíamos assumir que essa foi a "Terra sem Mal" original.

Todavia os humanos (Tupinambá) tornaram-se corrompidos e Monã então deixa o mundo, tomando consigo apenas Eri-paîé [Irin-magé]. Monã enviou Tatá [Tatta], o fogo, o qual queimou a superficie da terra, remodelando-a de plana para a sua atual aparência enrugada, com montanhas e vales.

Eri-paîé pede a Monã para viver novamente com o seu povo. Monã se apieda de Eri-paîé, mandando as águas para a terra, a resfriando e lavando. A água então forma o mar, conhecido como Paranã [Paranan], que significa "Amargura", porque as cinzas da combustão mudaram o seu sabor. Monã também deu uma esposa a Eri-paîé para repopular o mundo com uma nova e melhor humanidade.

Pelos seus atos como um karaíba (um tipo de entidade espírito-humana, a qual Thevet chama de demy-dieux, semi-deuses), Eri-paîé recebeu o título de Maíra-monã [Maire-Monan]. Como uma grande fome atacara os humanos, uma mulher enviou seus filhos para a floresta para encontrar ervas que os alimentasse. Eles encontraram uma criança que deu a eles muitos vegetais e raízes tal milho e batata-doce (îetika) para comerem quando batiam nela. O menino então pediu às crianças para manter o segredo e não contar nada a ninguém. Mas a mãe ficou muito curiosa quando viu aquele milagre e foi atrás daquela criança, que não era ninguém menos que Maíra-monã.

Foi ele que ensinou aos humanos sobre o curso de Îasý, a Lua e Kwarasý [Caroubsouz], o Sol, a imortalidade da alma, quais frutos, árvores e ervas eram bons tanto para comer e como remédios. Ele os ensinou como caçar e como defender a si mesmos dos animais selvagens, os quais eles deviam ou não deviam comer, porque os animais lentos os fariam lentos também. Ele também ensinou-os a arrancar todos os pelos do corpo, barbas e sobrancelhas. Apesar disso, Maíra-monã é desrespeitado pelos humanos, e os transforma em vários animais, o que apenas faz a inimizade dos humanos restante aumentar contra ele. Ele é então convidado pelos habitantes de uma aldeia chamada Detetã [Deteptã] para uma homenagem que Thevet chama de "Itauongane", mas chegando lá eles o forçam a pular através de três grandes fogueiras para provar-se como Grande Karaíba Soberano. Ele pula com sucesso pela primeira, mas no segundo teste ele é queimado, sua cabeça explode e o trovão sai dela, e ele tem seu espírito ascendido ao céu.

Maíra-poxy [Maire-pochy] é um parente de Maíra [Maire] (este Maíra sendo presumivelmente Maíra-monã no contexto em questão), o qual tem uma aparência muito feia, mas ele é mantido como servo pelo morubixaba da aldeia, uma vez que sempre traz comida da caça e pesca. Um dia Kunhã-eté [Quoniathe], filha do morubixaba, estava com fome e ele a deu do pescado que havia acabado de conseguir. Ela então ficou grávida, enfurecendo toda a aldeia. Quando a criança nasceu, todos os homens foram obrigados a trazer seus arcos e flechas a ela, mas o bebê não pegou as armas de nenhum deles. Mas quando Maíra-poxy, por conselho da avó da criança, trouxe seu arco e flechas, o filho as pegou, confirmando a paternidade, como os karaíba haviam previsto que deveria ser, quando ela encontrasse seu pai. As pessoas então começaram a murmurar contra Maíra-poxy, expulsando a ele, Kunhã-eté e a criança da aldeia. Todavia, o local ao qual eles foram tornou-se fértil e as colheitas abundantes, enquanto a aldeia do povo de Kunhã-eté estava passando fome. Maíra-poxy então envia sua esposa e filho para convidá-los para comer lá. Mas eles terminaram sendo todos transformados em animais, incluindo o pai de Kunhã-eté, o qual não acreditou nos conselhos de Maíra-poxy, tornando-se um jacaré (îakaré) e a esposa dele em uma tartaruga "icara". Maíra-poxy então abandonou sua aparência feia e erguendo-se ao céu com os seus companheiros transformaram-se em estrelas.

Entretanto, Maíra, filho de Maíra-poxy, quis ir atrás de seu pai. Maíra-poxy então o transforma em uma pedra, temporariamente separando a terra do oceano, de forma que nada podia seguir Maíra-poxy. Quando Maíra pôde recuperar sua antiga forma, ele foi viver entre os humanos e tornou-se reverenciado como um poderoso karaíba. De seus muitos feitos maravilhosos, um adorno de plumas feito com penas flamejantes foi o melhor. Um vizinho, invejando-o, pediu a Maíra várias vezes por ele, até que o karaíba finalmente o deu. Mas a alegria durou pouco, pois quando o colocou, ele foi tão terrivelmente queimado que correu para a água e se tornou uma saracura. Thevet então disse que este Maíra é filho de Kwarasý, o sol, o qual foi ao céu em busca de seu pai. Desta forma, nos poderíamos identificar Maíra-poxy e Kwarasý.

Mairatá [Maire-ata], filho de Maíra, engravidou uma mulher, mas a deixou. Ela foi então guiada pelo filho em seu ventre, o qual a pedia legumes para mostrar-lha o caminho em direção ao pai. Quando ela se recusou a fazer isso, ele ficou furioso e não mais a mostrou a direção. Como havia se perdido, ela então encontrou a casa de Sarigwé [Sarigóys], o cassaco. Ele esperou que ela dormisse e então deitou-se com ela. Sarigwé também a engravidou de si mesmo. Ela o deixou, e o homem, como punição por abusar da esposa do herói, foi assim transformado em um cassaco (sarigwé em idioma tupi antigo).

A mulher foi então capturada por um homem chamado Îagwara e seu povo, e então eles a devoraram e jogaram os bebês fora. Uma mulher encontrou-os no lixo e pegou-os pra criar. Os gêmeos cresceram rapidamente e pescavam, caçavam e coletavam frutos para a madrasta. Um certo dia ela os pediu para pegar os frutos da anajá [iuaia], e eles descobrem que aconteceu à mãe deles (Thevet não diz como), decidindo se vingar. Eles então dizem à mulher que existe um lugar abarrotado de anajás e convencem todo o povo da aldeia a estar lá no dia seguinte. O povo então toma suas canoas (ygara) e quando as pessoas estavam atravessando um braço do mar em direção à ilha com as anajás, os gêmeos fizeram a água os submergir e transformar todos eles, que tinham comido de sua mãe, em animais.

Os gêmeos então foram em busca de seu pai, o qual tornou-se um renomado karaíba em Cabo Frio. Quando os dois chegaram a ele, o pai os deu três desafios para provar sua origem. O primeiro era aparentemente fácil para ambos: eles atiraram flechas contra o céu, as fixando ali. No segundo, eles foram desafiados a passar duas rochas que constantemente batiam-se uma contra a outra. Apenas o filho de um karaíba podia cumprir tal tarefa. O filho de Mairatá mandou primeiro o irmão, uma vez que ele sabia que podia recuperar a vida do filho de Sarigwé. Quando ele tentou aravessar, as rochas o esmagaram e o fizeram em pedaços. O filho de Mairatá então juntou os pedaços do irmão e o lançou vivo novamente do outro lado antes de ele próprio sair. Eles tiveram que fazer isso por três vezes, mas tiveram sucesso. Todavia, no terceiro desafio eles tinham que pegar um peixe da morada de Anhã [Agnen] e novamente o filho de Sarigwé foi enviado primeiro e falhou, sendo pego pelo espírito ruim. O filho de Mairatá então chegou lá, salvando o irmão e pegando o peixe com sucesso para finalizar a missão. Assim eles foram reconhecidos e reverenciados como filhos de Mairatá. Esses dois irmãos gêmeos que não foram nomeados muito provavelmente são Arikuta [Aricoute] e Tamandwara [Tamendonare], embora Thevet não mencione nenhum nome nessa passagem específica.

Kwarasý comanda as estrelas a enviar uma pedra sagrada para a terra, como uma lembrança de Maíra (-poxy?). "Moritolyf"[1], aparentemente um tipo de macaco, é então encarregado de cuidar da pedra, e quando qualquer um ousa tentar destruir ou roubar, ele grita tão alto que todas as criaturas próximas correm para ajudá-lo. Após um dilúvio causado por um certo karaíba que Thevet não especifica, Moritolyf alcança os céus, mas ele foi tido em tão má-conta pelas estrelas que a Lua (Îasý), como a superior dos céus e seus habitantes, ordenou que estes dessem a tarefa de cuidar da pedra de Maíra para os humanos, e se eles falhassem em protegê-la, o mundo deles seria destruído. Thevet também destaca que as marcas de pés gravadas na pedra foram feitas pelo Grande Karaíba que os ensinou usar o fogo (Tatá) e deu-os as raízes que eles comiam, então ele é possivelmente o próprio Maíra-monã, embora o fogo tenha uma história diferente para sua origem em outra passagem.

Os irmãos gêmeos Arikuta e Tamandwara são filhos de Sumé, um parente de Monã. Eles viviam na mesma aldeia. Enquano Tamandwara é um bom pai de família e agricultor, Arikuta só está interessado em guerrar e subjugar a todos. Vindo para casa de uma batalha, Arikuta dá ao irmão um braço do inimigo para comer, se gabando da própria coragem e da temeridade do irmão. Tamandwara então reage e provoca-o: porque se ele fosse tão valoroso quanto ele mesmo clamava ser, por que não tinha trazido o corpo inteiro do inimigo para casa? Enfurecido ao ouvir aquilo, Arikuta atirou o braço contra a casa do irmão e a aldeia foi elevada ao céu. Então Tamandwara pisou tão forte no chão que ele se rachou e uma fonte de água surgiu, a qual inundou todo o mundo, matando a quase todos. Arikuta e a esposa subiram numa árvore de genipapo [genipar], enquanto Tamandwara e a esposa em uma pindoba [pindona], ambos no topo de montanhas. Arikuta pediu a esposa para jogar os frutos de genipapo na água para saberem quando a água abaixava.

Depois do dilúvio, ambos tiveram muitos filhos. De Arikuta vieram os "Toyanatz", os inimigos nativos dos Tupinambá (do Rio de Janeiro). Já os Tupinambá viam a si mesmos como filhos de Tamandwara, o nobre e valoroso filho de Sumé.

Thevet ainda informa que Monã colocou o fogo nas costas de um animal chamado "Ap"[2], e que após o dilúvio os gêmeos encontraram-no e assim puderam fazer o fogo.

NOTAS
[1] Esse nome certamente está incorreto pois em tupi antigo ambos os sons /l/ e /f/ não são encontrados, mas não há nada parecido (ao meu olhar) no dicionário que uso (Carvalho, 1987) para substituir essa forma.
[2] Anta, tapir (tapiîra)?

BIBLIOGRAFIA
CARVALHO, Moacyr Ribeiro de (1987). Dicionário Tupi (Antigo)-Português. Salvador.
MÉTRAUX, Alfred (1979). A religião dos Tupinambás e suas relações com as das demais tribos Tupi-Guaranis. 2a ed. São Paulo, Brasiliana.
THEVET, André (1575). La Cosmographie Vniverselle d'André Thevet Cosmographe dv Roy. Ilustree de diverses figvres des choses plvs remarqvables vevës par l'auteur, & incogneuës de noz Anciens & modernes. Tome Second. Paris. pp. 913b-920b.

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