A individualização compulsória ocidentalizante e a questão étnica americana (sob o entendimento de uma pessoa aculturada mas de origem indígena)

As grandes reflexões indigenistas de antropólogos igualmente grandes e de indígenas que raramente são de menor envergadura geralmente se dão diante de povos que em maior ou menor grau ainda não foram completamente assimilados. Ainda que haja um elevado grau de aculturação, no qual o passado (isto é, a identidade real e original) é colapsado num coma que dá lugar à errônea ideia de um pertencimento a uma sociedade dita nacional ocidental supostamente uniforme, determinadas estruturas ideológicas e econômicas permanecem ainda durante muito tempo, fazendo a comunidade em questão ainda ser, por exemplo, uma comunidade ― e não é possível dizer isso tudo sem lembrar que o conceito de “nação” no Brasil ocidental merece uma discussão própria e que a sociedade ocidental reconhece a si mesma como único modo possível de ser e estar-no-mundo e tem força suficiente numericamente para alimentar essa ilusão e mantê-la firme, enquanto assassina os povos que pensam diferente.

A grande questão para mim, na realidade, é o fato de que meu povo foi totalmente aculturado e os laços sociais quebrados e eu estou completamente sozinho nessa empreitada. Diferentemente de um Russell Means, o qual em seu célebre discurso no senado estadunidense ainda era capaz de traçar sua origem geral aos Oglala Lakota, com detalhes como a origem de sua mãe ao clã Águia de Guerra (War Eagle) e o de seu pai ao do Cavalo Ensandecido (Crazy Horse), ou, para não ir tão longe ideal e geograficamente, comunidades ribeirinhas brasileiras, a mim só sobrou o conhecimento de que uns 400 e tantos anos atrás os locais de onde meus parentes vieram (Pernambuco) e onde vivo (Alagoas) foram terras naturais dos Kaeté (ou, invertendo em termos indígenas, os Kaeté são parte dessa terra).

Minha genealogia não vai além de duas ou três gerações obviamente cristianizadas. Tal desconhecimento se dá principalmente pelo fato de que sucessivas gerações de meus antepassados parecem ter abandonado ou perdido suas terras ― ainda se falava quando eu era criança em um passado distante quando meus parentes maternos eram donos de longas faixas usadas em roças que foram roubadas, das quais as partes finais eu ainda pude ver sendo esfaceladas por sucessivas vendas; os paternos vieram fugindo de brigas fratricidas por território no Pernambuco. Toda essa história me joga assim num esquecimento completo de minhas origens, no qual os meus pais, altamente catolicizados e odiadores de qualquer coisa não-católica, contribuem me negando o conhecimento do pouco que eles ainda sabem e que eu deveria saber, por considerarem isso heresia, paganismo (de forma pejorativa).

Para um cristão não interessa seu passado ou sua origem, interessa seu destino: um paraíso, a salvação da alma. Posso ver meu pai em seu celular feliz com seu aplicativo da Bíblia sendo um conhecedor “natural” da história hebreia que fala de rios e montes distantes no espaço e no tempo, uma terra sagrada que é material somente há muitos quilômetros daqui ― e que mesmo que fosse totalmente ideal, e ainda assim clamasse ter sido histórica em algum momento, ele certamente não lhe daria menos fé ― ao mesmo tempo em que ignora completamente toda a história da paisagem local com que interage. Minha mãe igualmente devota sua sofrida vida à elevação do espírito através do canto religioso, da catequese dos vizinhos, da adoção de centenas (literalmente) de afilhados e afilhadas, com uma crença absurda na “palavra de Deus”. Eu sou uma grande exceção, um ponto de resistência numa bolha hiper-religiosa, num mundo que foi devassado pelo extrativismo da paisagem, que teve seu clima destruído, mas alguns detalhes culturais importantes permanecem: a cultura da mandioca e do fumo, que inegavelmente apontam para os indígenas dos quais viemos, características português falado na região que indicam influência fonética Tupi; para não mencionar as feições fenotípicas mestiçadas de minha família, no qual a maioria dos mais antigos e muitos dos mais novos possuem traços fortemente indígenas.

Eu sou assim o fruto de um processo de que agora sou consciente, um processo de assimilação e dispersão, física e cultural, um processo que teve como único fim produzir sujeitos iguais a mim: pessoas sem história nem memória, que tomam a Bíblia como seu passado, ignorando as formas como esse livro veio a se tornar o seu credo de fé, formas estas que dizem exatamente tudo que precisa ser sabido para afastar esse livro de si com toda a repulsa com a qual um felino teme a água, algo bem mais sério do que um Atahualpa, que checa e desdenha, atirando longe a Bíblia que lhe foi oferecida, porque, diferentes do inocente imperador Inca [1], sabemos ou deveríamos saber como, quando e porque a Bíblia nos vem sido oferecida sistematicamente nos últimos quinhentos anos, e a que sistema econômico e condições materiais e ontológicas somos submetidos por causa de sua hegemonia numérica na mentalidade dos povos das Américas.

Todavia, para mim, essa ciência não tem sido suficiente para nada, atualmente: meus familiares certamente ririam ou me tomariam por louco por trazer tudo isso à tona, como já fizeram quando trouxe discussão de pequenas partes disso. Eu sou assim uma pessoa que tem consciência de seu passado indígena, tem um profundo respeito e amor por uma forma algo ideal de meus ancestrais, que é tudo que me restou, mas ainda assim isso é insuficiente para produzir qualquer alteração num status quo dominado pela civilização ocidental, um aparato etnocêntrico ― e com diversos estágios, mais ou menos separados fenotipica e economicamente ―, uma vez que o ser indígena em si demanda a identidade de vários sujeitos compartilhando uma individualidade “tribal” ou étnica, algo totalmente rechaçado na atualidade ― certamente, a alt right brasileira chamaria de “socialijmu”. Em outras palavras, eu tomei consciência de que sou um Kaeté numa época em que os “caetés” estão mortos, enterrados e esquecidos no cemitério da memória alagoana, talvez para nunca mais retornarem enquanto entidade e identidade coletiva. Meu povo não foi só aldeado ou confinado em reduções ou reservas ― nomes quase bonitos para campos de concentração nas Américas ―, mas de sua total destruição se gabam os cronistas em pleno século XVII, quando ainda boa parte do que viria ser o Brasil ainda não estava totalmente sob o jugo da colonização.

A história dos Kaeté e a minha história são opostos complementares. De um lado a) aquele que é idealmente cristão (embora na prática minha resistência ao cristianismo tenha rudimentarmente começado há cerca de 15 anos), civilizado, urbano (embora hoje vivendo em zona rural), o individual, o indivíduo, vivendo numa família destacada de um contexto clânico, o que é material, a realidade agora. De outro b) os que tinham costumes étnicos, cultuadores de ancestrais e maraká, os “selvagens”, habitantes da mata, o coletivo, os divíduos, vivendo em contextos de parentesco tribal, que hoje é imaterial, ideal, uma realidade-outra. Essa oposição entre a e b, entre eu e os Kaeté, demanda em termos hegelianos uma Aufhebung, uma superação que implica uma retomada e uma conservação, um tornar-se um segundo outro ao refletir-se no primeiro outro, o outro-que-era-eu ou ao menos um outro-que-deveria-ser-eu se não tivesse sido violentamente impedido de exercer suas cultura, linguagem e maneiras de ser.

Mas esse processo do ente civilizado em direção ao ente primitivo ― “primitivo” aqui entendido como “original”, a “forma primeira” e não em sentido pejorativo ―, da existência em direção a uma essência compartilhada não-ocidental perdida, choca-se violentamente com a realidade material comercial, que demanda o indivíduo que pode ser quantificado em horas de trabalho e deve ser viável do ponto de vista econômico para si mesmo ― mas principalmente para o “mercado” ―, um ente que eu deveria adicionar que nesse momento não é menos ideal do que o ente que eu aspiro ser, rodeado por indivíduos que são o-que-eu-deveria-ser [2] ― de acordo com os padrões sociais vigentes ― mas que desprezam o ser e o pensar indígena, que duplamente são o-que-eu-queria-ser e também o-que-eu-não-posso-ser-sozinho.

A resposta mais simples e comum para esse dilema seria remover dos desejos o-que-eu-não-posso-ser-sozinho, mudando a forma de o-que-eu-queria-ser, para que ela entrasse em conformidade com o-que-eu-deveria-ser. Nesse último, toda a busca por um passado étnico Kaeté ancestral se prova ser inútil e desnecessária, uma vez que aos indígenas americanos [3] é permitido tudo, exceto ser um indígena americano, novamente sendo obrigado a citar Russell Means. Mas dessa negação existencial que funda o “brasileiro”, isto é, o abraçamento de uma identidade-outra que é imposta pelas convenções sociais vigentes, isto é, o status quo, parece haver algo dissonante para mim, como um músico que sente-se profundamente infeliz ao ser constrangido a tocar uma melodia que todos os outros músicos tocam mas lhe desagrada, por não estar em conformidade com sua manifestação artística, e, em vez de desarmonizar o próprio ser interno harmonizando-se com a música, harmoniza-o ao custo da desarmonia da sinfonia que exige a conformidade de todos às partituras e ordens do maestro.

Mas esse processo não é exatamente igual ao de um Melkor discordando de Ilúvatar, um Satã discordando do deus cristão, não é per se um processo de individuação, é mais um processo de dividuação consciente: não é que eu queira tocar uma música única e exclusivamente sozinho, antes, eu reconheço que tocar violinos vestido de black tie para mim é algo alheio, que não pertence organicamente à minha identidade, que é algo imposto por uma cultura alheia que me aliena daquilo que eu realmente sou, mesmo que eu o faça sozinho; o que eu quero é as vestimentas nativas, pintar o corpo de jenipapo e urucu, descalçar os pés e usar como instrumentos o solo em que meu pé pisa, as palmas das mãos, minha garganta e o chocalho sagrado, o maraká, não sozinho, mas, como os Kaeté de outrora, com os outros-eu, com aqueles que compartilham conscientemente comigo o ser Kaeté, que a esse ponto não seria mais uma expressão inata da cultura orgânica com a natureza ― como o eram os primeiros Kaeté ― mas um retorno consciente e sóbrio a ela depois de ter sido outro, isto é, depois de experimentar por 300 e tantos anos o ser “civilizado”.

Dessa forma, buscando não apenas uma “justiça social”, mas antes, uma justiça existencial, minha essência entraria em conformidade real com minha existência, reassumindo um ser-no-mundo que se vê integrado à paisagem local, ao próprio planeta, com o qual poderíamos pulsar num ritmo comum e nadar na mesma corrente novamente, por que é isso que é ser indígena. Se no Gênesis acontece o primeiro exemplo de aculturação e etnocídio ― entendido aqui como assassinato de um existir étnico ―, no qual a Adão é dado o mundo para o submeter, o que eu busco é justamente o oposto, dar-me ao mundo ― entendido aqui como um ecossistema vivo e inteligente composto de todas as espécies existentes, solo e demais características da paisagem ― para que ele me submeta, se quiser. Mas a diferença do humano ocidental para com todo o resto dos seres é que o que chamamos de natureza não parece querer nos submeter, antes parece querer nos harmonizar e adaptar ao ambiente, como o faz com tudo que se encontra em si.

Eu imagino que isso tudo deva soar como idilismo para pessoas nas quais os laços familiares, históricos e étnicos sejam mais fracos e que possuem pouco ou nenhum contato com a natureza-não-urbana, a dizer o mundo vivo tal qual ele é ou deveria ser em vez de um amontoado de matéria morta no qual humanos ocidentais ego e etnocêntricos transitam preocupados com a “economia”, fadados a correrem atrás da própria sobrevivência de forma exaustiva e incessante enquanto fofocam por Whatsapp. Mas é minha plena certeza que a única utopia aqui são os sonhos de riqueza, sucesso e prosperidade sob o jugo de um mercado e economia completamente dominados por alguns pequenos números de pessoas que não se veem mais como humanos, mas como banqueiros, pastores evangélicos, latifundiários, “empreendedores”, etc. Também os marxistas contemporâneos veriam pouco proveito de meu anticapitalismo pouco disposto a aceitar burocracias partidárias dos tantos “PCs” que nos liberam do jugo da burguesia só para oferecer o seu próprio. O meu anticapitalismo é um que quer ser caçador-agricultor e não proletário, que quer ser ethos [conjunto de características de um povo ou grupo que o diferencia dos outros] e não Werk [trabalho].

Isso porque eu sei, não por “idealizar” mas por experienciar coisas suficientes, por ter passado por muitos processos dialéticos com diferentes pessoas, por ter nascido numa determinada sociedade e questionado todas as suas fundações mais básicas, incluso a forma da família e sua função econômica que é bastante mascarada com romantismos que não cabem agora discorrer sobre, mas merecem ser lembrados, mesmo quando eu defendo a retribalização ― isto é, a criação de grupos de parentesco extensos com significado real e não com valor econômico ou meramente moralista. O grande problema desse aparato absurdo de mercado que tem se espalhado ao custo de vidas humanas é que as pessoas raramente se questionam, raramente ouvem gente de outras culturas, ou as que não se inserem na lógica do mercado (ou da esquerda, que é só a lógica do mercado com outra cor): quase nunca dão o respeito com que exigem serem tratadas, mesmo quando falam na crença de seu messias andando por sobre as águas.

Em suma, a grande questão, que ainda fica em aberto é: como recuperar e vivenciar uma identidade indígena em um século XXI que declarou guerras aos que ainda são reconhecidos como indígenas, quando eu próprio não sou mais assim reconhecido, levando em consideração os problemas de apropriação cultural que podem ocorrer com os indígenas, as dificuldades em se escapar de uma mentalidade egocêntrica e egoísta ocidental e os preconceitos para com tudo o que é dos indígenas, de cantos, instrumentos, tinta no corpo, até a própria pele? Como vivenciar isso com efetividade, não apenas, ao estilo new age, como “espiritualidade” “individual” ― um eufemismo pra apropriação cultural ―, de maneira coletiva, como uma psicologia dividualizante exige?

Notas
[1] Inocente em termos de conhecimento do cristianismo e seus propósitos totalitários.
[2] O cidadão civilizado disponível no mercado de trabalho para todo e qualquer desejo da “economia” acima mencionado.
[3] Espero que esteja suficientemente óbvio que por “americano” eu sempre implico os habitantes ― em especial os nativos ― de todas as Américas e nunca apenas os cidadãos dos EUA, os estadunidenses.

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